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“Impedido pela polícia o futebol feminino”

Tem gente que é diferente, e já entra em campo escolhendo qual vai ser o endereço da glória. Trave esquerda, lá no cantinho. Não importa quando e, talvez, também nem como. Começada a partida, minuto a minuto, suporta quantos toques forem necessários pra cumprir a história, já escrita em algum lugar. Como quem lê às minúcias a linguagem do balançar dos corpos, e sabe quando é chegada a hora. Foi assim com ela.

Em um tempo não muito distante, o jornal anunciava em letras garrafais que o futebol era incompatível com a natureza das mulheres. “Impedido pela polícia o futebol feminino”, dizia¹. Por ironia do destino, quando ela nasceu, quem via a sua intimidade com a bola não titubeava: ou as leis naturais estavam erradas, ou mudaram de vergonha. Se vez ou outra os ventos do futebol escolhem pés pra abençoar, aquele era um desses momentos.

Dia após dia, uma jogadora dessas cria com a bola uma relação que ninguém mais. É cumplicidade recíproca, de quem fala a mesma língua muda. As adversárias fazem o possível pra odiá-la, mas como fazê-lo? Quando ela existiu, todas passaram a existir com ela.

A impressão que dá é que, com a craque, a bola entra no gol antes mesmo do chute. Como se já soubesse o caminho só de espiar os pés conhecidos, vindos na sua direção. Perdida na entrada da área, a bola olha pra eles e se tranquiliza, se deixa pentear. Ai de quem quiser levá-la pra longe. Cansada de maus-tratos, não desgruda de jeito nenhum.

Por lealdade às pernas que avançam com rapidez, ou por medo das que tentam afastá-la com botes afiados, se deixa proteger. Rola juntinho. Atende aos comandos. Tamanha a velocidade do zigue-zague desenhado na grama, só mesmo confiando em quem lhe dá a direção.

Quando, finalmente, percebe que o toque certeiro já vem acompanhado da comemoração, não decepciona, e entra de mansinho pra descansar no fundo da rede. A goleira lhe olha com olhos de quem foi traída. Pouco importa. Tinha endereço, e os gritos da multidão dão conta do dever cumprido.

Quem um dia ousou dizer que o futebol não era coisa pra mulheres não poderia ter cometido maior equívoco. Que os perdoem os deuses da bola. Pra fazer justiça, talvez em algo tenham acertado: ela não servia pro futebol. Como boa Rainha, era ele quem lhe servia.

……….
¹ O jornal é de 1960, e a proibição perdurou até a década de 80. Durante esse período, os jogos disputados por mulheres eram interrompidos, e as atletas que jogavam eram detidas pela polícia, inclusive pelo DOPS. Dentre as justificativas biológicas apresentadas, estavam: “menor massa muscular; ossos mais frágeis; bacia oblíqua; centro de gravidade mais baixo; coração menor; respiração menos apropriada; menor resistência nervosa e de adaptação orgânica”. Além de serem impedidas de praticar o futebol, mulheres também não eram autorizadas a exercer funções dentro de campo, como repórteres, árbitras ou dirigentes.

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