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(In) Competência da Justiça do Trabalho em ação que envolve categorias de base do Cruzeiro Esporte Clube

  1. Introdução:

Tramita no Tribunal Superior do Trabalho processo no qual se discute a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação envolvendo as categorias de base do futebol do Cruzeiro de Belo Horizonte.

Atualmente, o processo aguarda processamento de Recurso Extraordinário do clube mineiro, que aponta violação do artigo 114 da Constituição da República Federativa do Brasil.

No ano de 2019 o TST noticiou[1] decisão da SDI-I que reformou a decisão da Turma e reconheceu a competência da Justiça do Trabalho, nos autos do E-RR 165100-65.2009.5.03.0007.

A questão se reveste de contornos peculiares. A uma porque envolve a prática do desporto educacional e de formação, previstos na Lei Geral do Desporto. A duas, tendo em vista que a decisão foi proferida pela Subseção Especializada em Dissídios Individuais-I do Tribunal Superior do Trabalho (SBDI-I do TST), órgão responsável pela uniformização da jurisprudência trabalhista.

  1. O Processo:

O Ministério Público do Trabalho e a Promotoria da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, ajuizaram Ação Civil Pública em face do Cruzeiro Esporte Clube, sob o fundamento no qual foi constatada a presença de atletas nas categorias de base, alguns com idade inferior a 14 anos. Após aprovação no processo seletivo, os jovens passavam a residir no Centro de Treinamento. Apenas os atletas da categoria Sub-20 ou Júnior mantinham contrato de trabalho com o clube.

O pedido da ação contemplava, entre outras obrigações, que o clube afastasse imediatamente das categorias de base os atletas com idade inferior a 14 anos, providenciando acompanhamento psicológico para todos e transporte para visita aos pais e responsáveis. No tocante aos jovens com idade entre 14 e 16 anos, o pedido era que o clube celebrasse contrato formal de aprendizagem, com bolsa não inferior ao salário mínimo.

O TRT da 3ª Região deu provimento ao Recurso Ordinário do MPT e do MPMG e deferiu o pedido de celebração de contrato de aprendizagem e de garantia do direito de visita a família pelo menos cinco vezes ao ano. No entendimento do Tribunal, a Constituição Federal somente admite o trabalho de jovens com idade entre 14 e 16 anos na condição de aprendiz, com garantias trabalhistas e previdenciárias mínimas. O Acórdão Regional asseverou que o atleta não profissional em formação detém condição similar ao aprendiz e, por consequência, faz jus ao contrato formal escrito e ao recebimento de bolsa. Por se tratar de contrato de aprendizagem para formação de atleta, nos dizeres da decisão do TRT, haveria incidência das regras próprias do desporto e, de forma supletiva, as disposições alusivas ao contrato de aprendizagem.

Diante dessa decisão o Cruzeiro recorreu de revista para o Tribunal Superior do Trabalho, sendo que a 5ª Turma daquela Corte deu provimento ao recurso do clube para afastar a competência da Justiça do Trabalho e determinar a remessa dos autos para uma das Varas de Infância e Juventude de Belo Horizonte.

O acórdão que acolheu a pretensão do clube levou em conta que as atividades dos atletas mirins têm caráter formativo e se enquadram no conceito de desporto educacional, nos termos do art. 3º, I da Lei Pelé.

O MPT interpôs recurso de Embargos que foi acolhido pela maioria dos Ministros em razão da contrariedade à Súmula n.º 126 daquela Corte, pois de acordo com a SBDI-I, verificou-se que não haveria, no acordão do Tribunal Regional, qualquer menção à prática de desporto educacional, tendo o próprio clube reconhecido nos autos a prática de desporto de rendimento, razão pela qual, a decisão embargada teria extrapolado os fundamentos lançados no acórdão prolatado pelo TRT, em contrariedade ao entendimento consubstanciado no verbete jurisprudencial que veda o revolvimento de fatos e provas.

  1. Questão Processual:

Independentemente do mérito da questão, ou seja, da discussão que analisa o desporto educacional ou de rendimento, um fato merece análise a atenção especial: trata-se do conhecimento do recurso de Embargos.

A SBDI-I é o órgão do TST responsável pela uniformização das decisões proferidas pelas 8 Turmas do Tribunal.

Desde o ano de 2007, o recurso de Embargos para a SBDI-I passou a ser cabível unicamente para a impugnação das decisões de Turmas do TST que divergissem entre si, ou de julgados proferidos pela Seção de Dissídios Individuais, ou que divergissem de Orientações Jurisprudenciais ou Súmulas do TST.

Tal fato demonstra que o recurso de Embargos do art. 894 da CLT são os Embargos de Divergência, a evidenciar a finalidade inerente ao recurso, além de conferir à SBDI-I do TST sua verdadeira e principal função, qual seja, a de pacificar, em âmbito nacional, a interpretação da legislação material e processual trabalhista.

Portanto, o conhecimento de recurso de Embargos por divergência a uma Súmula de natureza processual somente poderia ser cogitada – e mesmo assim com reservas – em situações excepcionalíssimas.

No caso concreto do recurso do MPT interposto em face da decisão da 5ª Turma do TST, a SBDI-I afirmou ser possível conhecer de recurso de Embargos por contrariedade à Súmula nº 126 do TST, quando a decisão embargada adota premissa fática diversa da registrada no acórdão regional.

Todavia, para se chegar a esta conclusão a SBDI-I do TST contrariou a sua própria jurisprudência, pois revolveu matéria que estaria estampada no acórdão regional para justificar a decisão.

Data vênia, mas em se tratando de uma Corte uniformizadora da jurisprudência, não poderia a SBDI-I agir como uma instância recursal ou revisional, o que de fato ocorreu no presente caso tendo em vista que o recurso foi provido sob o fundamento no qual a Turma ao concluir pela incompetência da Justiça do Trabalho, adotou a premissa de que a hipótese debatida nos autos era de desporto educacional e que tal assertiva não constava do acórdão regional.

Logo, a contrariedade à Súmula n.º 126 foi perpetrada pela SBDI-I que ao dar provimento ao recurso de Embargos revolveu fatos e provas produzidos nos autos e atuou como Corte revisional e não uniformizadora de Jurisprudência.

  1. Questão envolvendo menores:

Ao escrever Manual de Direito do Trabalho Desportivo (VEIGA, LTr : 2020, 3ª edição) abordei a questão da atividade do menor e naquela oportunidade pude mencionar que existe uma preocupação mundial com a regulamentação do trabalho do menor, a justificar a recomendação nº 138 da OIT[2] de que a pessoa estará apta para ingressar no mercado de trabalho ao término da escolaridade básica, o que geralmente ocorre aos 15 anos de idade.

As diretrizes e bases da educação nacional são regidas pela Lei n.º 9.394/1996, cujo artigo 32, alterado pela Lei n.º 11.274/2006, prevê que o ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão.

De acordo com a referida legislação, o ensino fundamental obrigatório terminará aos 15 anos de idade, o que por óbvio, não quer dizer que a partir desta idade o jovem deverá se concentrar no mercado de trabalho, pois os estudos devem acompanhar o cidadão durante toda a sua vida.

A Recomendação n.º 146 da OIT também é expressa ao discorrer acerca da idade mínima. Verbis:

“ 7 –

(1) Os Países-membros deveriam ter como objetivo a elevação progressiva, para dezesseis anos, da idade mínima, para admissão a emprego ou trabalho, especificada em cumprimento do Artigo 2 da Convenção sobre a Idade Mínima, de 1973.

(2) Onde a idade mínima para emprego ou trabalho coberto pelo Artigo 2 da Convenção sobre a Idade Mínima, de 1973, estiver abaixo de 15 anos, urgentes providências deveriam ser tomadas para elevá-las a esse nível.

8 – Onde não for imediatamente viável definir uma idade mínima para todo emprego na agricultura e em atividades correlatas nas áreas rurais, uma idade mínima deveria ser definida no mínimo para emprego em plantações e em outros empreendimentos agrícolas referidos no Artigo 5, parágrafo 32, da Convenção sobre a ldade Mínima, de 1973. ”

Ocorre que, até pode ser justificável, que comprovada a regular matrícula em instituição de ensino, o jovem pode ingressar no mercado de trabalho.

Atualmente, o jovem com idade entre 14 e 16 anos não poderá ser um empregado regular. Contudo, é inegável a presença desta camada da população no mercado de trabalho, mas que atualmente está à margem da lei.

Tal fato ocorre, principalmente, nos núcleos familiares em que o jovem precisa se lançar no mercado de trabalho para complementar a renda familiar.

No intuito de prevenir este tipo de situação é que estabelece a Recomendação nº 146 da OIT, ao sugerir a adoção de mecanismos sociais que visem preencher esta lacuna e evitar que o jovem abandone seus estudos para se inserir no mercado de trabalho. Assim estabelece o item 3 do referido diploma. Verbis:

“ Deveriam ser objeto de especial atenção as necessidades de crianças e adolescentes sem famílias, ou que não vivam com suas próprias famílias, ou de crianças e adolescentes que vivem e viajam com suas famílias. As medidas tomadas nesse sentido deveriam incluir a concessão de bolsas de estudo e treinamento.”

Com efeito, o menor a partir dos 14 danos de idade, ainda não completou o seu ciclo de desenvolvimento e maturidade intelectual, sendo que o seu ingresso no mercado de trabalho, implicará em desqualificação de mão-de-obra, excluindo do competitivo mercado de trabalho aquele jovem que não concluiu os estudos no momento em que deveria.

Outrossim, estudos realizados pela Organização Internacional do Trabalho, demonstram que a criança que ingressa no trabalho de forma prematura, no decorrer de sua vida adulta, apresenta média salarial bem inferior daquele jovem que começou a trabalhar após os 18 anos.

Todavia, quando se trata do atleta de futebol estes conceitos não devem ser vistos com o mesmo rigor de um ofício ordinário. Em razão das peculiaridades que envolvem a própria formação do atleta profissional e o seu tempo de atuação, torna-se imprescindível uma análise mais aberta acerca do tema.

O jovem atleta não pode ser comparado a um aprendiz. Ele não exerce um ofício. Com efeito, o jovem atleta desempenha uma atividade, de caráter lúdico, mas que a prática reiterada não guardará ligação com o seu aprimoramento no futuro na medida em que o talento para a prática desportiva é algo inato ao atleta.

  1. Conclusão:

O desporto educacional está previsto no art. 3º da Lei n.º 9.615/1998, sendo definido como aquele praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo, a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer.

O parágrafo primeiro daquele artigo estabelece que o desporto educacional pode constituir-se em esporte educacional e esporte escolar.

Já o desporto de formação é aquele caracterizado pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva em termos recreativos, competitivos ou de alta competição.

O parágrafo segundo 2º do Decreto n.º 7.984/2013, regulamentador da Lei Pelé, dispõe que o esporte escolar pode ser praticado em competições, eventos, programas de formação, treinamento, complementação educacional, integração cívica e cidadã e desta forma serão realizados por Confederação Brasileira de Desporto Escolar – CBDE, Confederação Brasileira de Desporto Universitário – CBDU, ou entidades vinculadas, e instituições públicas ou privadas que desenvolvem programas educacionais e instituições de educação de qualquer nível.

Até mesmo o desporto de rendimento pode ser praticado e organizado de modo não-profissional, identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio.

É de se concluir, portanto, que nestas modalidades não há que se falar em contrato de trabalho.

Com efeito, contrato especial de aprendizagem desportivo (no qual é assegurado assistência educacional, psicológica, médica, odontológica, alimentação, transporte, convivência familiar, além de seguro de vida e acidentes pessoais) não se confunde com contrato de aprendizagem profissional de que trata o art. 428 da CLT.

A aprendizagem profissional está relacionada a um ofício o qual poderá ser aprimorado com a prática reiterada e supervisionada. Na aprendizagem desportiva, práticas reiteradas podem qualificar o profissional tecnicamente, porém, o talento e a habilidade são características inatas. Como diz o ditado popular: “é pelo dedo que se conhece o gigante”.

É indene de dúvidas que aquele jogador com idade inferior a 14 anos pode e deve ser estimulado a praticar qualquer modalidade desportiva. Obviamente não será um menor aprendiz e muito menos um atleta profissional.

Para uma família menos favorecida, ter um menino que jogue bem futebol e demonstre interesse pelo ofício, pode ser, muitas das vezes, a única oportunidade de sucesso na vida. Na vida daquele atleta e de toda a sua família.

Nota-se que nestas hipóteses, não estamos falando de um trabalho, mas sim da prática desportiva lúdica, com intuito de contribuir para a educação daquele cidadão.

Na obra O Desporto Visto pelos Grandes (Antônio Azevedo PIRES, 1956), o jogador austríaco Karl Koller considera “muito importante a paixão pelo desporto desde a idade mais juvenil e a possibilidade de praticamente se exercer uma certa atividade desportiva ainda antes do ingresso no clube”, como uma das condições para se alcançar o objetivo de ser um desportista de primeira linha.

Em razão de todos esses elementos é que manifesto entendimento no qual há afronta ao art. 114 da CRFB, na medida em que o objeto de ação que diz respeito à observância das regras de instalação física de alojamentos, de saúde, de educação, de formação psicológica e de socialização dos menores, são matérias que estão dissociadas de uma relação de trabalho típica, razão pela qual a sua análise seria de competência da Vara da Infância e da Juventude, nos termos os artigos 405 e 406 da CLT que dispõem acerca do exercício de atividade artística infantil, bem como a previsão contida no art. 148, IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990).

……….

[1] Disponível em: http://www.tst.jus.br/-/tst-reconhece-competencia-da-justica-do-trabalho-em-acao-envolvendo-categorias-de-base-do-cruzeiro . Acesso realizado em 16/08/2021.

[2] (…) 3. A idade mínima fixada nos termos do parágrafo 1 deste Artigo não será inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a quinze anos.

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