Por Felippe Marchetti
Nos últimos meses, a regulamentação das apostas esportivas ganhou espaço nas discussões políticas no Brasil. O Governo Federal, visando ampliar sua arrecadação, pretende taxar a atividade, que é altamente lucrativa. Visto que atualmente os recursos obtidos pelas empresas de apostas acabam ficando no exterior, tal movimentação é plenamente justificável.
O que causa preocupação, entretanto, é o fato da discussão estar predominantemente centrada em questões tributárias e econômicas, quando o foco principal deveria ser outro: a proteção da integridade esportiva. Entende-se por integridade a manutenção do jogo limpo e da lisura dos resultados das competições, preservando os ideais de dedicação e comprometimento na tentativa da vitória. A credibilidade do futebol nacional, patrimônio cultural de todos os brasileiros, está seriamente ameaçada pela atuação de grupos criminosos organizados que manipulam resultados.
A regulamentação ou proibição das apostas não interferirá diretamente na questão da manipulação, visto que as partidas disputadas em território nacional são e continuarão sendo oferecidas em sites hospedados em diferentes países, independentemente da vontade das autoridades brasileiras. O que a regulamentação poderá auxiliar, no entanto, será na promoção de medidas de integridade que visem proteger o esporte de uma ameaça que continuará presente.
O futebol brasileiro apresenta debilidades que o tornam suscetível à ocorrência desse tipo de crime – desde a vulnerabilidade econômica e social dos atores esportivos à problemas de governança e de gestão nas entidades de administração do esporte, como mostro a seguir:
- Vulnerabilidade financeira dos profissionais do esporte: em clubes médios e pequenos, os manipuladores podem pagar cifras muito superiores ao que atletas recebem mensalmente. Temos, no Brasil, aproximadamente 83% dos atletas que recebem por volta de um salário mínimo. Cerca de 52% dos atletas profissionais vivenciaram atrasos salariais em seus clubes nos últimos anos. Apenas 17% dos clubes de futebol têm calendário durante toda a temporada, o que leva a celebração de contratos de curta duração. Esses dados evidenciam a incerteza profissional enfrentada por grande parte dos atletas brasileiros, o que leva muitos deles a atuarem na várzea ou em outras profissões no restante do ano.
- Falta de compreensão sobre o tema: ainda há desinformação quando se trata desse assunto. É fundamental a adoção de campanhas de esclarecimento e prevenção fortes para todos os profissionais do esporte, mostrando quais os tipos de manipulação existentes, as estratégias de aproximação utilizadas pelos criminosos, os riscos e punições (esportivos, criminais e ameaças à integridade física) de se envolver nesse tipo de prática, e como se deve proceder caso uma oferta de manipulação seja realizada.
- Fatores referentes à gestão: temos um histórico de má governança nas principais entidades esportivas que gerem o futebol brasileiro, o que por vezes acarreta em leniência na criação de estruturas transparentes e de proteção do esporte. Por anos, o problema foi varrido para debaixo do tapete, com dirigentes fingindo não ver um tsunami que estava cada vez mais próximo da costa e que agora atinge diretamente as principais competições nacionais. Outro ponto que vale salientar é que, atualmente, para controlar a gestão do futebol de uma agremiação esportiva, basta um acordo direto com seus dirigentes mediante o pagamento de uma taxa de cessão. Não há nenhum tipo de controle por parte das federações sobre a origem dos fundos desses investidores, seus reais interesses e evolução patrimonial. Isso torna fácil que um grupo, sob pretexto de captar e desenvolver novos talentos, arrende um clube para fabricar resultados, algo já visto em países como Bélgica e Finlândia na última década. Ademais, o Brasil é o país onde são disputadas mais partidas profissionais anualmente no mundo (parte delas sem transmissão ao vivo ou mesmo gravação de vídeo para posterior análise). Proporcionalmente, há um baixo percentual desses jogos sendo monitorados pelos sistemas de detecção de fraudes, que são apenas o ponto de partida de um procedimento investigativo.
A partir da identificação desses problemas, cabe a pergunta: o que podemos fazer para proteger a integridade do esporte brasileiro?
- Primeiramente, é fundamental que parte da verba arrecadada com a regulamentação das apostas esportivas seja, por lei, destinada para a proteção da integridade esportiva.
- Criação de um departamento de integridade para tratar dessas questões. Um órgão que sirva como elo de comunicação entre os diferentes atores que compõe a cadeia de prevenção: federações esportivas, clubes, casas de apostas, polícia, sistema judiciário, empresas de monitoramento, dirigentes e atletas. Esse deve ser o centro de proteção do esporte no que tange à manipulação de resultados, com investimento em inteligência e fluxo de informações rápidas, constantes, livre de interesses externos e confiável.
- Alocação de agentes de integridade independentes e autônomos, com capacitação para receberem informações, filtrá-las e organizá-las em um sistema de educação, prevenção, auxílio na investigação e na montagem de provas para punição eficientes.
- Criação de um sistema de denúncia com credibilidade, anônimo, irrastreável e de fácil acesso para os atletas, como o Red Button, já adotado em alguns países da União Europeia.
- Medidas educacionais para todos os atores da cadeia esportiva.
- Proibição de propaganda/vinculação de atletas em atividade com casas de apostas esportivas, devido ao claro conflito de interesses presente.
- Due diligence nos processos de arrendamento de clubes de futebol.
- Com o boom das apostas esportivas, diversas empresas com sede em paraísos fiscais, como Curaçao, passaram a atuar no Brasil. É preciso que haja checagem de quem são os proprietários e da origem dos fundos das casas de apostas esportivas que investem no patrocínio de clubes e competições esportivas. Sabe-se que esses investimentos podem ser utilizados por organizações criminosas para fins de lavagem de dinheiro, com maquiagem de valores pagos nesses contratos para evitar a necessidade de envio do dinheiro para fora do país.
- Debater a questão dos patrocínios a clubes e competições, como feito na Espanha e Inglaterra. O excesso de exposição do público à publicidade de apostas pode levar a comportamentos compulsivos e ludopatia. Dados recentes do governo britânico mostram que aproximadamente 3milhões de jovens foram impactados ou correm o risco de serem afetados pelo vício em jogo. Como o Estado brasileiro irá lidar com esse possível impacto?
A discussão é longa e são diversos pontos que devem ser melhor compreendidos, debatidos e estruturados no que tange à regulamentação das apostas esportivas e proteção da integridade do esporte brasileiro. Cabe a todos os envolvidos um debate consciente para que possamos aliar o desenvolvimento econômico com a proteção dos aspectos éticos e sociais do esporte de alto rendimento.
Crédito imagem: Getty Images
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Felippe Marchetti – Doutor em Integridade do Esporte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul