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Interferência da Justiça comum em questões esportivas

Em decisão ao recurso interposto pelo Ministério Público, a 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu pela anulação da Assembleia Geral que definiu o formato de votação da eleição para presidente da CBF, ocorrida em abril de 2018.

A alteração nos critérios da eleição que conduziu Rogério Caboclo à presidência da entidade foi interpretada pelo órgão ministerial como contrária às regras democráticas.

Referido formato para votação foi definido em 2017, pela Assembleia Geral atualmente anulada pela justiça estadual carioca, e determinava que os votos das 27 federações teriam peso 3, conferindo peso 2 aos clubes da Série A, e peso 1 aos clubes da Série B.

A defesa da CBF se esmerou na autonomia desportiva, prevista no art. 217 da Constituição Federal, porém, sem sucesso, está sob a ordem judicial de intervenção, a ser conduzida pelos presidentes do Clube de Regatas do Flamengo e da Federação Paulista de Futebol, os quais foram indicados para realizar uma nova Assembleia Geral para o respectivo processo eleitoral.

Para a análise jurídica dos fatos trazidos acima, acentua-se o art. 1ª da Lei nº 9.615/98, o qual reconhece as leis internacionais que regem o desporto como fonte do direito a ser cumprido no ordenamento jurídico desportivo brasileiro.

Por esta razão, no que tange à resolução de questões esportivas, as entidades de administração e prática desportiva devem observar as determinações do ordenamento jurídico transnacional, como, por exemplo, o Estatuto da FIFA.

Dois dispositivos do Estatuto da FIFA se enquadram na situação em questão, o art. 66, o qual impõe que a Corte Arbitral do Esporte é a única entidade reconhecida pela FIFA para resolução de conflitos envolvendo agremiações desportivas, após o esgotamento dos recursos disponíveis na Justiça Desportiva de cada país, e o art. 68, que proíbe que a Justiça Comum seja acionada para apreciar e julgar conflitos desportivos, exceto em casos específicos e autorizados pela própria FIFA. Além disso, a entidade máxima de administração do futebol recomenda que cada entidade de administração desportiva nacional preveja em seu regulamento a proibição das entidades de prática e administração desportiva acionarem a Justiça Comum em litígios de natureza desportiva, prevendo sanções aos filiados que deixarem de observar referida regra.

A regra que proíbe que ligas, clubes, respectivos membros, jogadores ou árbitros acione as cortes judiciais em busca de resoluções de questões internas foi reforçada com a decisão proferida pela Corte Federal Suíça, a qual indeferiu uma ação civil movida pela agremiação espanhola Rayo Vallecano contra a FIFA.

Desta forma, as entidades filiadas à FIFA, como a CBF, por exemplo, podem sofrer sanção caso não atuem em prol de assegurar que suas agremiações filiadas provoquem o Judiciário em busca de resoluções às questões esportivas.

Nessa linha, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (Resolução CNE 29/09), por meio do seu art. 231, prevê a possibilidade de exclusão do campeonato que estiver disputando e multa às agremiações que acionarem o Poder Judiciário antes do esgotamento de todas as instâncias da Justiça Desportiva em lides cujo objeto compreende disciplina e competição.

Ora, se a Justiça Comum pode ser acionada em casos de afronta à normas públicas cogentes, mas veda-se o ajuizamento para apreciar e julgar questões internas relacionadas ao esporte, o limite da autonomia para organização e funcionamento das questões desportivas, como regras de prática e direção não ascenderiam importantes imbróglios, como se verifica ao longo da história do esporte.

Consoante amplamente ensinado, a autonomia desportiva não presume independência, permitindo, portanto, a atuação do Poder Judiciário em casos de violação à normas de ordem pública e caráter cogente.

O desafio, no que tange à interferência da justiça estatal em questões esportivas reside no que seriam questões esportivas internas relativas à organização e funcionamento, e o que e onde passariam a adentrar assuntos de normas cogentes, e resvalar em questões de ordem pública.

Assim nos deparamos com as proposições controversas, como o objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3045), ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista com o objetivo de suspender a eficácia do “caput” e parágrafo único do artigo 59, do Código Civil, no que diz respeito à convocação de Assembleias Gerais com quórum mínimo para a realização de alterações estatutárias e eleições relacionadas as entidades de prática desportiva.

O Ministro Relator Celso de Mello julgou mencionada ADIN improcedente, pela perda do objeto com a alteração do art. 59 do Código Civil antes de seu julgamento ter sido proferido, mantendo a questão em aberto. Até o momento, as decisões relativas à incidência do art. 59 do Código Civil às entidades de prática desportiva foram proferidas por meio de controle incidental da constitucionalidade da norma, as quais por não atenderem o art. 102, §2º da CF, alcançam somente as partes integrantes do processo, mantendo o assunto sob significativas divergências jurisprudenciais.

A esse respeito, o ministro Celso de Mello entende que, apesar da autonomia desportiva consagrada na Carta Magna, as entidades de administração e prática desportivas submetem-se ao que ele denomina de normas estruturantes, as quais “representam verdadeiros arquétipos no processo de configuração institucional de tais entes”, razão pela qual o teor do art. 59 “caput” e em seu parágrafo único do Código Civil “qualifica-se como matriz determinante da própria ação normativa atribuída, em sede estatutária, às entidades privadas em geral, cuja autonomia – por supor o exercício de determinada prerrogativa nos precisos limites traçados pelo ordenamento estatal – permite-lhes agir com relativo grau de liberdade decisória, sem que se veja, em tal comportamento estatal, qualquer ofensa ao princípio fundado no art. 217, I da Constituição da República”.

Na mesma linha, o ministro César Peluzo entende que “o art. 217 a mim parece, com o devido respeito, proíbe que o Estado intervenha na organização de associação desportiva, isso é, trata-se de norma protetiva contra ato concreto de intervenção estatal, não contra o poder de legislar sobre formas gerais de associação. Essa parece-me ser a diferença”.

Em contraponto, Ives Gandra da Silva Martins Filhos defende que “no que diz respeito aos artigos 58 e 59, não se aplica às entidades desportivas, que, por força de norma especial de lei suprema, gozam de autonomia quanto a sua organização e funcionamento. O artigo 59 do novo diploma estabelece eleição direta às associações em geral, sendo, portanto, norma aplicável às demais associações, que não gozam de forma e estatutos próprios, com autonomia ampla, conforme determina a Constituição para as eleições esportivas”.

O art. 59 confere competência privativa à Assembleia Geral, para destituir os administradores e alterar o Estatuto, além de prever um formato específico para convocação, permitindo que o quórum e demais critérios sejam previstos no estatuto.

A controvérsia não alude à mencionada autonomia desportiva em si, já que decerto a entidade de administração desportiva a possui plenamente, mas se determinadas regras a esta impostas podem ser sobrepostas pela deliberação da própria entidade, ainda que de forma democrática perante seus associados.

É preciso compreender a finalidade da norma, o valor ou bem jurídico a ser tutelado, e através disso, interpretar de forma sistêmica e teleológica a acepção e os contornos da autonomia disposta no artigo 217, I, da Constituição Federal, e a objetividade jurídica das questão adjacentes pendentes de apreciação.

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