Um bom e gentil amigo, desses que se dispõem a ler o que você escreve e ainda entendem bem da matéria, enviou uma mensagem pra mim dizendo que, na coluna da semana passada, eu não me posicionei sobre a suposta batalha entre Kant e Hegel acerca do princípio da autonomia esportiva. Pior. Disse que faltou texto. Eu respondi rápido e amargurado: “Leia meu livro ‘Constituição e Esporte no Brasil’. A resposta está nas pp. 145-146”.
Agora, mais calmo e redimido (ele estava certo), vou voltar ao tema e tentar trazer mais informações e opiniões sobre estatistas e autonomistas no esporte. Pra isso, vamos ser radicais, ou seja, ir lá no fundo, nas raízes.
Façamos um retorno à batalha de modo resumido: Kant defendia que a autonomia é um conjunto de autonomias individuais, e Hegel postulava que não existiria liberdade fora do Estado. A autonomia esportiva seria a conjunção das vontades independentes de atletas, sócios de clubes, dirigentes etc. para a prática e organização de determinada modalidade.
Ainda um pouco confuso? Então é aqui que realmente precisamos aprofundar mais. Vai render mais de uma coluna.
Essa autonomia esportiva que Jean-Loup já pensava no início do séc. XX como que advinda de um “parlamento” de atletas significa nada mais nada menos que liberdade para produzir e reproduzir uma linguagem própria do respectivo esporte.
Linguagem? Sim, isso mesmo. É só entender o seguinte: para que duas pessoas disputem a mesma modalidade, precisam antes combinar os objetivos a serem alcançados e quais movimentos corporais são obrigatórios ou proibidos. E se outras pessoas se interessarem naquele esporte, inclusive em outros países? As coisas vão se tornando mais complexas, e seus praticantes se defrontarão com dois dilemas: (1) como tornar universal essa linguagem do nosso esporte?; e (2) como podemos nos organizar para que essa linguagem universal realmente seja aplicada por todos? Ou seja, nosso esporte se tornou tão popular que, para que possamos participar de torneios dentro e fora de nosso país, temos que levar nossas “regras de jogo” mundo afora e garantir que todos terão “igualdade” na disputa.
O que surge a partir daí? Entidades locais, regionais, nacionais e mundiais para organizar e gerir o esporte. De início, várias, múltiplas, realizando a mesma tarefa. Depois, aquela que tiver o campeonato mais desejado, mais querido pelos torcedores e atletas, vai começar a monopolizar as atenções e, claro, a própria modalidade.
“Ein platz prinzip” será a consequência [calma, ainda não vamos falar desse novo princípio que se escreve em alemão, mas ele significa uma cadeia de entidades monopolistas de cada esporte]. O que é importante por ora é entender que o controle dos movimentos corporais necessários para a prática de um esporte gera uma linguagem própria, que vai se universalizando, globalizando. Imagine uma música que J. S. Bach compôs no séc. XVIII. Como ela se tornou mundialmente conhecida antes dos aparelhos de gravação? Como um músico pode executá-la atualmente como o compositor barroco alemão a compôs há mais de 300 anos? Simples: partitura. Eureka! Criou-se um sistema de linguagem universal composto por símbolos inteligíveis por qualquer pessoa que tenha aprendido a ler uma partitura musical, independentemente de sua língua pátria. O significado desses signos: música. Um brasileiro hoje que lê essa partitura toca a música como Bach a havia imaginado. Incrível! Saem os mesmos sons nos mesmos tempos musicais. Por meio dessa linguagem expressa na partitura, controla-se o movimento corporal do músico, seus dedos, de modo que execute a obra do mesmo modo que qualquer ser humano do planeta possa também tocar. Claro que talento e sensibilidade não constarão da partitura. Dependem do artista. Está aí o “a mais” da performance musical.
Em 1997 eu estava em um evento internacional em Havana e jovens do mundo inteiro resolveram que queriam jogar futebol. Imediatamente, depois de surgir uma bola no campo, assim como se todos já soubessem de cor aquela “partitura”, surgiram 11 jogadores dos dois lados da cancha que sabiam que os movimentos com as mãos na bola eram praticamente que limitados apenas aos goleiros, que lateral se cobrava de tal modo, que o gol era o objetivo… Cada um de uma parte da Terra: latino-americanos, africanos, europeus, gringos e asiáticos. Todos conversavam a mesma língua corporal, a do futebol associação, mas nada entendiam o que o outro falava quando abria a boca. Quem assistia, do mesmo modo, compreendia a linguagem que se performava no campo, os movimentos, regras e impedimentos.
Óbvio que não era uma competição oficial, mas, em qualquer disputa de futebol em que se escolham as regras oficiais, é necessário acolher o que a FIFA determina como regra de jogo. E o que são as regras do jogo para a FIFA? Quem escreve a “partitura” dos movimentos corporais que se permitem em uma partida? Entendam: a autonomia para determinar as regras de jogo é tão estratégica que, além de não permitir que nenhum Estado, governo, político ou magistrado as ditem, nem mesmo a FIFA se permite normatizá-las. Isso mesmo.
Como a FIFA se envolve com patrocinadores, governos e redes de televisões, prefere garantir que o núcleo duro da autonomia esportiva, a determinação das regras de jogo, fique à cargo de uma organização independente. Por isso o VAR só foi definido após o “International Football Association Board” (IFAB) – o órgão independente – decidir que poderia ser utilizado nas competições da federação, não a FIFA.
Em resumo, a linguagem de competição e, também, a gestão das modalidades passaram a ser um assunto tão importante na tríade melhor performance esportiva + incerteza do resultado + igualdade esportiva que a autonomia passou a ser fundamental, indeclinável.
Temos, nesse sentido, que a designação dos signos que compõem a “partitura” da linguagem universal de cada modalidade, principalmente daquelas que, como o futebol, alimentam paixões de milhões de pessoas por todo o globo, passe a ser alvo de disputas políticas, mercadológicas e mesmo do submundo do crime. Para manter a regularidade entre performance e incerteza do resultado, então, a linguagem em disputa precisa estar sob controle de entes autônomos, que se liguem mais detidamente aos interesses do esporte em si. Não de outros agentes externos.
Por isso: autonomia esportiva – fator de confiabilidade, de garantia de competições sérias e seguras.