Muitas das grandes transformações políticas aconteceram depois de um trabalho rigoroso, incansável e corajoso de apuração jornalística. No esporte, não é diferente. Os escândalos na FIFA e COI, que desencadearam importantes avanços na gestão do esporte, se tornaram conhecidos também graças ao trabalho do jornalista Andrew Jennings.
No último sábado (8), Jennings morreu na Inglaterra. A causa da morte ainda não foi divulgada. Uma rede social do jornalista apenas diz que ele sofreu de uma “doença repentina e breve”.
O escocês, que foi ainda pequeno morar em Londres e se naturalizou inglês, sempre foi um craque do ofício jornalístico, dos raros que ainda entendem a importância de uma grande história e do quanto é preciso suar para ir atrás dos fatos. Apurar, apurar de novo, perguntar, fazer a pergunta definitiva e encontrar as respostas que ninguém ouviu.
Mais que escrever, acreditava e vivia intensamente o jornalismo.
Em 1986, na BBC, a rede de televisão se recusou a difundir um documentário realizado por ele sobre as entranhas da Scotland Yard. O material acabou se transformando em um livro.
Sua investigação sobre o envolvimento britânico no caso Irã-contras ganhou o prêmio de “Melhor Documentário Internacional”, no New York TV Festival, em 1992
Ele também era um apaixonado pelo esporte, e pelas estruturas de poder do jogo. As reportagens, documentários e livros que escreveu sobre a estrutura do poder no futebol e no COI revelaram as entranhas da corrupção e se tornaram marco na denúncia sobre o funcionamento das organizações que comandam o esporte.
Ele escreveu “The Lords of the Rings: Power, Money and Drugs in the Modern Olympics” sobre o Comitê Olímpico Internacional. A obra apresentou à opinião pública caminhos e desvios na alta cúpula do esporte olímpico, gerou a queda de cartolas e obrigou o COI a realizar uma reforma profunda
Sobre o futebol, escreveu em 2011 o indispensável Jogo Sujo, o mundo secreto da FIFA. Um trabalho de apuração fantástico que desmoronou a credibilidade da gestão da entidade. Sobre o livro ele disse:
“As coisas que descobri são tão estarrecedoras que até eu mesmo fiquei chocado. […] O futebol ainda é um jogo bonito, é claro. Isso eles não podem roubar de nós. Eu gostaria que o futebol tivesse a liderança que merece. Nesse espírito, dedico este livro a todos os torcedores e fãs do futebol.”
Jennings não só inspirou jornalistas pelo mundo, como eu. Mas ajudou a melhorar o esporte no planeta. Também por conta de suas denúncias, a vigilância aumentou e a organização interna do esporte precisou se proteger. Veja o caso da FIFA.
Um resumo da história
Mudanças de comportamentos, de gestão, de regras e do direito também se dão após grandes irritações.
Lá se vão quase sete anos da revelação do maior escândalo que o futebol já viu. Um tsunami investigativo e jurídico que derrubou a mais alta cúpula do futebol mundial e desencadeou uma série de mudanças no esporte. Muitas, importante frisar, ainda caminham a passos lentos.
Jennings já tinha escrito Jogo Sujo quando o maior escândalo do futebol tomou as manchetes do mundo em 2015. Além de ter chamado a atenção da opinião pública sobre a corrução na entidade máxima do futebol com as reportagens que fazia e o livro que publicou, o repórter teve participação direta no caso.
“Eu entreguei documentos cruciais que desencadearam as prisões de ontem feitas pelo FBI”, disse ele à época.
Escândalos de corrupção normalmente ganham nomes; o maior que o futebol já viveu se chama “Fifagate”.
No dia 27 de maio de 2015, o FBI, com a chancela do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, comandou uma operação-surpresa num hotel luxuoso de Zurique, Suíça. Lá estavam os principais dirigentes da FIFA. Catorze deles foram presos, entres eles José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol.
Os dirigentes eram acusados de corrupção, por meio de fraude e lavagem de dinheiro em acordos de marketing e direitos televisivos de transmissão, passando também pela escolha das sedes da Copa do Mundo.
O suborno ultrapassou os 100 milhões de dólares, e como o dinheiro passou pelos Estados Unidos, o FBI entrou na história. A primeira medida tomada pelo órgão americano foi extraditar os detidos, os levando para os EUA.
Corrupção é crime e traz consequências.
Os dirigentes presos naquele 27 de maio de 2015 na Suíça foram sendo condenados um a um, inclusive José Maria Marin.
Depois de sete semanas de julgamento, o Tribunal Federal do Brooklin, em Nova York, condenou Marin por seis dos sete crimes pelos quais havia sido acusado. A pena foi de quatro anos de prisão e multa de cerca de 4,5 milhões de dólares. Marin se tornou o primeiro chefão do futebol brasileiro condenado por corrupção.
Punidos por lá, mas livres por aqui.
Isso porque nossa legislação é falha, e nossas entidades esportivas começaram a entender só recentemente a importância de ter mecanismos internos eficientes de controle e conduta. E, mais, corrupção privada não é tipificada no Brasil.
Portanto, sem previsão legal, não existe crime.
Assustada, a FIFA foi obrigada a agir.
Cinco meses depois das prisões na Suíça, o Comitê de Ética da FIFA (que tem independência estatutária da entidade) afastou, entre outros, o então presidente Joseph Blatter. Dois meses depois, Blatter e Michel Platini, ex-presidente da UEFA, foram considerados culpados por gestão desleal e conflitos de interesse e afastados do esporte por oito anos.
Gianni Infantino assumiu a FIFA prometendo transparência e um novo modelo de gestão. Mas a prática ainda não caminha ao lado do discurso.
Em novembro de 2018, um juiz do Comitê de Ética da FIFA foi preso na Malásia acusado de usar o cargo para faturar com benefícios pessoais. O caso aconteceu poucos meses depois de o Conselho da FIFA ratificar, em julho de 2018, o novo Código de Ética. Nele a palavra “corrupção” simplesmente sumiu. Logo ela, que havia sido decisiva no combate ao maior escândalo da história do esporte.
Caminhos existem
Nos últimos tempos, também em função das denúncias de Jennings, nunca se falou tanto em transparência no esporte. Nunca se discutiu tanto a gestão esportiva.
E, também é verdade, que os discursos por transparência e ética têm sido mais frequentes na cúpula do futebol mundial e do movimento olímpico, por aí e por aqui. Mas do que se diz para o que se faz, sempre existem muitas histórias.
Investir em planos de integridade, com conselhos independentes e órgãos fiscalizadores autônomos, seria mais do que discurso, seria uma verdadeira atitude comprometida com ética e transparência.
Desde as denúncias de Jennings e do escândalo Fifagate, o esporte tem avançado. Várias entidades esportivas já estão trabalhando com governança e compliance, protegendo a instituição. Mas é preciso andar mais.
Existe um projeto de lei que tramita do Senado, o PL 68, que tem relatoria do professor de direito e colunista do Lei em Campo Wladimyr Camargos, que seria revolucionário para a gestão esportiva no Brasil. Entre outras coisas, ele tipifica o crime de corrupção privada no Brasil. Roubou de clube ou entidade esportiva, vai preso.
Ou seja, existem caminhos, na esfera esportiva e estatal: planos de integridade e PL 68. Com eles, ser transparente e ético deixa de ser apenas uma necessidade moral de nossos dirigentes – passa a ser também uma obrigação legal.
Afinal, as histórias contadas por Andrew Jennings foram muito importantes, e merecem novos e felizes capítulos.
Mesmo após a morte, o jornalismo de Jennings seguirá como referência e seu desejo jamais pode ser esquecido:
“Eu gostaria que o futebol tivesse a liderança que merece.”
Crédito imagem: Agência Senado
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