Eu já disse que João Lyra Filho era capaz de criar uma distorção no espaço-tempo. Se recorrêssemos à Teoria da Relatividade de Albert Einstein, seu contemporâneo, seria como que um buraco negro a torcer tudo o que estava a sua volta, não só a matéria, a luz, como também o próprio tempo. Pois ele viveu o horror da perseguição dos “liberais” da Velha República por parte dos revolucionários de 1930 dentro da sua própria casa. Seu pai, parlamentar federal, veio a falecer pobre e desacreditado como um dos “carcomidos” que os getulistas perseguiram implacavelmente (o país vivia uma revolução, amigos). E, mesmo assim, J. Lyra Filho torna-se prócer do Estado Novo para a área esportiva, ressignificando a triste realidade de sua intimidade familiar, isso por perceber a importância da revolução em curso para com ela colaborar.
O “pai fundador” do Direito Esportivo no Brasil relutava contra a profissionalização do esporte, sua “mercantilização”, e, contudo, foi o construtor da estrutura que apoiou juridicamente a institucionalização do profissionalismo na área.
Lyra Filho criou no Brasil também pioneiramente uma narrativa sofisticada e coerente de defesa da autonomia esportiva – como temos visto nas minhas últimas colunas, para depois negá-la enquanto ocupava a mais alta função da República em matéria de esporte.
Sem embargo, nunca permitiu a total estatização da Justiça Esportiva por ele criada. O Conselho Nacional de Desportos (CND) era órgão revisor, mas os tribunais esportivos continuavam gozando de relativa autonomia. Hoje, ao contrário, e somente a título de exemplo, a Justiça Esportiva Antidopagem está totalmente estatizada no Brasil, situação que nem a Ditadura Vargas e a nem mesmo Ditadura de 1964 impuseram. Essa não parecia ser a vontade de Lyra Filho.
Um poço de contradições? Um homem barroco? Haveria certo oportunismo? Não. Eu não o vejo assim. É necessário analisar o homem na sua época. Ao que o mundo assistia nos anos 1930, 1940? Uma grande reação ao liberalismo econômico vinda sobretudo do movimento dos trabalhadores e fortalecida pela Revolução Russa de 1917, como, ainda, uma reação nefasta aos valores liberais por parte do nazifascismo. Regimes autoritários se alastravam, e o Brasil flertava despudoramente com eles. Getúlio Vargas chegou a receber uma condecoração de Hitler (quando estiver no Rio, vá até o Palácio do Catete e poderá vê-la exposta: um colar ornamentado por suásticas).
Lyra Filho era advindo de uma família de liberais da República Velha e se adaptava à esperada modernização do Brasil não só na economia como também na cultura, nas artes e, em grande medida, por suas próprias mãos, do esporte. Isso tudo por meio de um regime de força, dada a vitória dos tenentistas na Revolução de 30.
Estava sempre sobre um fio de navalha. Defendia valores liberais, como a autonomia esportiva, mas criou aquilo que denomino em meu último livro, “Constituição e Esporte no Brasil” (Ed. Kelps), por “Autonomia Tutelada” (vou falar sobre esse tema na próxima coluna).
Chamo a atenção da minha rara e atenciosa leitora ou leitor para uma constante na obra lyriana: mesmo quando advogava a intervenção do Estado na organização esportiva, o autor compreendia a existência de esferas distintas de poder, como se lê no seu “Introdução ao Direito Desportivo”:
O Conselho Nacional de Desportos não é órgão criador de direito, mas órgão animador do direito criado pelo poder competente. Confina-se sua jurisdição dentro de órbita administrativa restrita. É, sim, um traço de união entre a ordem pública, relativa ao desporto, e a ordem das atividades privadas do mesmo desporto. (p. 242)
Essa opinião acerca da organização autorreferente e desterritorializada do direito esportivo provinha de um entendimento quanto à especificidade da linguagem esportiva e, consequentemente, jusesportiva, como se vê abaixo:
Não será possível construir a ordem do movimento desportivo, livre do arbítrio que gera a anarquia, sem base em regras orgânicas e princípios normativos. Tais regras e princípios não são gerais, mas inerentes ao desporto, derivados da substância específica do próprio desporto. (id., p. 97)
O autor partia, desse modo, da ideia de constituição de um sistema autorreferente, com “regras orgânicas” – direito interno da esfera esportiva transnacional, que se desenvolvia em razão da preservação da “substância específica do próprio desporto”. Leia-se: a linguagem lúdica criava linguagem jurídica orgânica, autárquica e transnacional. Entendia que do esporte: “desperta-se a linguagem de um entendimento coletivo, que transcende idiomas e superam sentimentos individualistas” (id., p. 104).
Tanta erudição, tanta sofisticação em um momento de pouca ainda densidade científica no estudo do Direito Esportivo? De onde viriam então as bases filosófica, sociológica e, sobretudo, jurídica para que João Lyra Filho alcançasse esse nível teórico tão avançado para a época? Nas minhas pesquisas descobri que esse referencial se assenta primordialmente em dois autores: Oliveira Vianna e sua Culturologia, além de Oliver Holmes e a Jurisprudência Sociológica norte-americana.
Volto a esse tema na próxima edição.