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João Lyra Filho professor e a resistência à Ditadura Militar

Nos últimos dois números da coluna, comecei a falar de João Lyra Filho, o patrono do Direito Esportivo no Brasil. Já trouxe elementos importantes para que se entenda sua história pessoal e procurarei agora dar a dimensão acadêmica de sua trajetória de vida. Lembro sempre ao leitor que, em meu livro “Constituição e Esporte no Brasil” (Ed. Kelps), trago mais detalhes acerca desse tema.

João Lyra Filho era um homem da academia. Começou a lecionar, imagine, aos 18 anos de idade. E, após sua graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil – atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, tornou-se professor universitário. Sua carreira na docência universitária inicia-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que depois foi incorporada pela Universidade do Rio de Janeiro.

A partir de 1951, torna-se professor catedrático – conforme nomenclatura das carreiras docentes da época (como se fosse um “dono” da cadeira, da disciplina). Exercia, assim, a cátedra em “Economia Política e História das Doutrinas Econômicas”. Seu vínculo acadêmico era com a instituição que sucedeu sua antiga empregadora, tornada Universidade do Estado da Guanabara (UEG), atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ali, depois, também exerceu a função de reitor, entre 1967 e 1972. E notem que bela homenagem: o principal edifício da UERJ leva hoje seu nome e fica ao lado do Maracanã, o Estádio Mário Filho (o autor do monumental “O Negro no Futebol Brasileiro” e dono do histórico Jornal dos Sports).

Pense na seguinte cena que podemos observar hoje na cidade do Rio de Janeiro: de um lado, no templo do futebol: o “inventor das multidões”, Mário Filho, irmão e inspiração jornalística de Nelson Rodrigues; e do outro, no espaço das ciências: o “escriba do Estado Novo no esporte”, João Lyra Filho. Eternizados após a morte como já apareciam em fotos da inauguração do estádio: lado a lado dando seus nomes a construções vizinhas e tendo o Morro da Mangueira como pano de fundo. Eram amigos em vida e se fincaram como “pedra” na arquitetura carioca. Uma universidade e o mais famoso estádio de futebol do planeta.

Além da construção da sede da UEG, o que marca a passagem de João Lyra Filho pela reitoria da instituição foi o embate que teve com a Ditadura Militar em 1968. Estudantes resistiram à invasão do Hospital das Clínicas da universidade pelo Departamento da Ordem Política e Social – o temível e hediondo DOPS. O aluno de medicina Luiz Paulo da Cruz Nunes foi atingido com um tiro na cabeça disparado pelos policiais. A reação de João Lyra Filho foi a de retirar imediatamente o aluno com uma maca que ele mesmo auxiliou a carregar, entrar na ambulância que o levou até ao centro cirúrgico e acompanhar pessoalmente o procedimento. Como o estudante não resistiu ao ferimento, levou ele mesmo o corpo para autópsia, “para evitar a insinuação de que o estudante Luís Paulo tivesse morrido de enfarte ou inflamação nos rins”, como revelaria ao jornal Correio da Manhã, aditando que “os estudantes foram um pouco violentos. Sòmente um pouco. Os policiais foram quatro vêzes piores. Um êrro não justifica o outro”. Um de seus biógrafos, Luiz do Rego Monteiro, conta que foi também o reitor Lyra Filho quem conduziu o cortejo fúnebre do manifestante segurando seu caixão.

Note-se que o Estado da Guanabara era àquela época dirigido por Francisco Negrão de Lima, eleito em 1965 no partido oposicionista PSD e varguista notório. A trajetória político-acadêmica de Lyra Filho ainda continuava de certo modo associada ao ex-presidente da República morto em 1954.

O período em que se desenvolve a longeva carreira acadêmica de João Lyra Filho é marcado por acontecimentos muito relevantes e quentes da história do Brasil, como se viu acima. Essa primeira fase vai desde a implantação do “Estado Novo” e sua contribuição à produção intelectual que legitimasse a construção de um sistema esportivo nacional no regime varguista (tema de minhas próximas colunas), passando, ainda, pelo acompanhamento da corrente modernista das artes que pontificava aquele período.

Lyra Filho era contemporâneo de Villa-Lobos, maior músico brasileiro de todos os tempos, que, como ele, era um intelectual orgânico – na conceituação gramsciana – do Estado Novo. Frequentava o Ministério da Educação e Saúde na gestão de Gustavo Capanema no edifício que foi projetado pelos maiores arquitetos modernistas da história: Le Corbusier, Lúcio Costa e o jovem Oscar Niemeyer. Nesse mesmo prédio que ocupou o espaço onde havia o Morro do Castelo, desfeito para abrir espaço ao “Rio modernista” e de cujos despojos se fez o Aterro do Flamengo, afastando a praia para uma distância grande daquela região central, e que hoje é justamente batizado por Palácio Capanema, trabalhava Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do ministro que deu nome ao prédio. Por ali passavam em audiências com o ministro vindo das Alterosas e em contato com o grande poeta também mineiro os maiores nomes da literatura modernista. Do mesmo modo, transitavam por lá os irmãos Villas-Boas em suas articulações pela “Marcha Para o Oeste”, que integrou o Brasil do deserto sertanejo central ao Brasil do litoral, fazendo contato e protegendo povos indígenas antes autóctones.

O país se descobria ao passo em que se construía enquanto potência.

Intelectuais estrangeiros em visita ao Rio também passavam pelo Ministério da Educação e Saúde e provavelmente foram interpelados pelo arguto Pai do Direito Esportivo Brasileiro acerca das novidades da produção teórica no exterior.

No esporte, o futebol tomava os corações das multidões no lugar antes ocupado pelo turfe e o remo. A Seleção Brasileira passa a ser de uma relevância que assumia contornos de assunto de Estado. Mário Filho luta contra o atavismo tacanho e ultraconservador do maior inimigo do getulismo na imprensa, Carlos Lacerda. Era justamente esse jornalista o principal adversário da construção do Maracanã para a Copa de 1950. João Lyra Filho estava com Mário Filho nessa batalha.

E é especialmente acerca de como todo esse caldeirão cultural e de tensões políticas influenciou na obra jusesportiva de Lyra Filho que passarei a falar na próxima coluna.

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