Não foi apenas uma carta com personagens importantes do futebol feminino contra um patrocinador. Foi um posicionamento histórico e exemplar das mulheres na defesa de direitos humanos, contrariando o silêncio permanente dos homens nessa luta. As mulheres deram “um soco na política de direitos humanos” da FIFA.
Nesta segunda-feira (21), mais de 100 jogadoras de futebol – as mais populares estão no movimento – assinaram uma carta aberta enviada à FIFA pedindo o fim do vínculo da entidade com a Aramco – empresa estatal de petróleo e gás da Arábia Saudita.
As atletas alegam que o país que gere a patrocinadora da FIFA não respeita a igualdade de gênero, os direitos humanos e o meio ambiente.
A FIFA assinou contrato de patrocínio com a Aramco em abril deste ano. O vínculo de quatro anos torna a estatal parceira global da entidade, com direito a vincular sua imagem à Copa do Mundo de 2026 e ao próximo Mundial feminino, que será disputado no Brasil em 2027.
Na carta aberta, as jogadoras chamam o contrato da FIFA com a Aramco de um “soco no estômago”.
Arábia Saudita e Sportswashing
A Arábia Saudita é um país que não respeita a proteção internacional de direitos humanos. Segundo a Anistia Internacional, o país pratica uma repressão implacável contra ativistas pacíficos, jornalistas e acadêmicos. O país está todos os anos no topo dos países que mais praticam a pena de morte, com dezenas de pessoas executadas a cada ano, tem uma política discriminatória contra mulheres e não permite a liberdade religiosa. Além disso, a tortura é instrumento rotineiro de trabalho oficial. O país foi acusado em 2021 de matar e esquartejar um jornalista no exercício da profissão.
Teria mais, mas dá para parar por aí.
Para melhorar a imagem internacional, o país tem se aproveitado do esporte.
Nos últimos anos, a Arábia Saudita vem fazendo grandes investimentos no futebol e outros esportes. Para entidades que defendem os direitos humanos e direitos LGBTQIA+, o país árabe promove o que se chama de “sportswashing”.
O Sportwashing é uma estratégia de marketing que utiliza o esporte para reposicionar a imagem de uma marca, produto ou país. Uma estratégia antiga, usada por Adolf Hitler nos Jogos Olímpicos de 1936 para propagar a ideologia nazista, por exemplo.
“Pensamos que, como futebolistas, e especialmente como mulheres, temos a responsabilidade de mostrar ao mundo e à próxima geração o que é certo. A Fifa proclama sempre que quer que o futebol seja inclusivo e dê o exemplo. Se assim for, certifique-se de se alinhar com patrocinadores que dão o exemplo”, escreveram as atletas.
Em resposta à carta, a FIFA esqueceu valores humanos e reforçou a importância econômica do patrocínio.
“As receitas de patrocínio geradas pela Fifa são reinvestidas no jogo em todos os níveis e o investimento no futebol feminino continua a aumentar, incluindo para a histórica Copa do Mundo Feminina de 2023 e seu novo e inovador modelo de distribuição”, acrescentou.
A Arábia Saudita faz o papel dela, mas o fato da Fifa entrar nessa que nos leva a uma reflexão necessária: a entidade realmente leva a sério a política de direitos humanos que tem?
Ao se aproximar desse parceiro, a entidade, em nome de uma “internacionalização do futebol”, esquece direitos universais e também a própria política interna, que traz no Estatuto a proteção de direitos humanos.
A política de Direitos Humanos da Fifa
É importante entender que o fato de levar a Copa ou um Mundial para um país que desrespeita direitos humanos não é um crime, nem assinar um patrocínio com um governo que ignora direitos humanos. Isso não se discute.
Acontece que a Fifa ao tomar esses caminhos abraça quem não deveria abraçar.
A ver.
Do ponto de vista do Direito Empresarial, o manifesto das atletas se tem base em inúmeros tratados internacionais e comunitários de afirmação da igualdade e não discriminação de gênero, profundamente interligados com o direito de laborar, assim como a promoção de diminuição de impactos degradantes sobre a natureza.
No espectro do Direito do Trabalho, como bem trouxe o amigo e colunista do Lei em Campo Rafael Teixeira, “o protesto escrito das desportistas trabalhadoras prestigia a Convenção (CV) n. 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (não discriminação em razão de gênero no trabalho), CV n. 100 da OIT (isonomia salarial independente do gênero), CV n. 122 (política de emprego), e outras várias sobre o direito a um meio ambiente do trabalho equilibrado, a incluir a parte interna e externa em contato com a natureza (CV n. 115 proteção contra radiações, CV n. 148 ambiente de trabalho, CV n. 162 sobre a proteção contra o amianto, CV n. 187 saúde e segurança no trabalho, dentre outras). Estas CVs da OIT são reforçadas pelos Tratados de Formação da União Europeia (TUE), de Funcionamento da União Europeia (TFUE) e a Carta de Direito Fundamentais da União Europeia (CDFUE).”
A verdade é que o mundo exige hoje de todos, inclusive das entidades esportivas uma política ativa, ou seja, de proteção de direitos humanos. A postura passiva, de apenas respeitar direitos humanos já é muito pouco.
É nessa permanente contradição que a Fifa insiste em ficar.
Esporte não se afasta do direito e o direito tem como base a proteção de direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos, tratados internacionais e os próprios regramentos internos da Fifa reforçam esse compromisso inegociável.
Basta dar uma olhada no estatuto da entidade, a “constituição” do movimento privado do futebol.
No art 4. 2, a entidade se declara neutra em matéria política e religiosa (tentando proteger a utopia da neutralidade esportiva). Mas complementa escrevendo que exceções se darão em casos que dizerem respeito aos objetivos estatutários da Fifa.
Um pouquinho antes, o artigo 3 do estatuto diz que a Fifa protege direitos humanos.
A entidade traz ainda a Política de Direitos Humanos apresentada em 2017 – logo após o FIFAGATE – e um novo Código Disciplinar que se tornou mais rigoroso no combate ao preconceito.
Fifa precisa decidir se respeita ou não direitos humanos
A aproximação com a Arábia Saudita, com a Copa de 2034 e o patrocínio da Aranco, é outdoor de um retrocesso gigante depois de avanços recentes da entidade na proteção de direitos humanos.
Nessa hora é fundamental agir, levantar dentro do ambiente esportivo o debate necessário e contemporâneo indispensável à sociedade, aos Estados e aos organismos internacionais.
A verdade é que a Fifa precisa decidir se abraça ou não a própria política de direitos humanos. A autorregulação não pode ser só propaganda institucional, precisa ser guia concreto de conduta.
As mulheres levantaram a voz, deram um “soco no estômago” na hipocrisia do futebol, mas os homens seguem em silêncio.
Até quando?
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