O “futebol de várzea” ou “futebol armador” deixou de ser apenas uma expressão para as pessoas que jogavam em algum campo de bairro aos finais de semana. A várzea passou por uma grande reestruturação e organização de campeonatos, criando um aspecto econômico que antes não existia.
A várzea sempre se notabilizou por ser um celeiro de craques, responsável por ceder jogadores para os clubes Brasil afora. O exemplo mais recente é Patrick de Paula, que deverá fazer sua estreia no Campeonato Brasileiro nesta noite, contra o Fluminense. O volante ganhou os holofotes depois da retomada do Campeonato Paulista, quando virou titular do Palmeiras e decidiu o torneio ao chutar no ângulo o pênalti que deu o título do Paulistão ao clube.
Patrick é fruto de uma várzea que está cada vez mais profissionalizada e organizada quando se trata das competições de futebol. O jogador de apenas 20 anos, defendia o Cara Virada Futebol Arte nos campos de várzea de Santa Margarida, um dos bairros mais pobres e violentos do Rio de Janeiro. O jogador foi descoberto pela equipe paulista atuando nos campos cariocas. Depois, ele ainda foi destaque e campeão da Taça das Favelas de 2017. De lá para cá, sua vida mudou totalmente.
Além das competições gerarem um prazer emocional, hoje elas movimentam a economia dos bairros onde são disputadas. Jogadores, dirigentes de clubes e arbitragem, sim, a várzea se profissionalizou.
A pandemia do novo coronavírus causou um profundo impacto econômico às pessoas que vivem desse meio. A suspensão do futebol amador, no dia 16 de março, causada pela pandemia da covid-19, tirou a renda mensal de atletas, entidades e profissionais envolvidos com o esporte.
Muitos tiveram que trocar o par de chuteira para conseguir sobreviver e garantir a renda de suas famílias.
“O atleta de várzea não tem vínculo trabalhista, portanto, acabam não tendo nenhum tipo de receita nessa hora”, afirma Mauricio Corrêa da Veiga, especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo.
Rodrigo tem 28 anos e durante boa parte da vida sempre viu no final de semana uma oportunidade para bater aquela bolinha e conseguir um dinheiro (aproximadamente R$ 200 reais por partida). Com a ausência do futebol, está sofrendo bastante para conseguir sobreviver e conseguir pagar suas contas, e foi um, entre tantos, que teve de ‘pendurar as chuteiras’ temporariamente.
“Alguns clubes em que já atuei não me deixaram na mão. Fizeram uma proposta para mim de adiantamento, de me pagarem um valor todo domingo (dias de jogos), e depois eu retribuo jogando para eles ‘de graça’ para compensar. Eu sofri bastante, era onde eu tirava minha renda. Estou com o aluguel e outras contas atrasadas, vivendo de ‘bicos’ para conseguir pagá-las.”
Xuxa, como é conhecido, diz que o futebol funciona como terapia, conseguindo esquecer os seus problemas do dia-a-dia por alguns minutos.
“Eu sinto uma libertação quando entro dentro de campo. Esqueço todos meus problemas. O futebol é um remédio para mim! É um momento de paz por 90 minutos”, contou ele, que além de defender o Aliançados, de Osasco, o time que possui mais carinho, também já atuou pelo Turma do Bafo, Jardim Clímax, Jardim dos Estados e Vila Nova.
Em cada time que joga consegue receber um valor por partida, ou então, assina um contrato com algum dos times para disputas de campeonatos. Ao assinar o contrato, Rodrigo recebe um valor fechado para jogar todos os jogos competição.
Atuando na posição de centroavante, Xuxa, costuma participar de torneios amadores em São Paulo e em Sorocaba, como a Copa Kaiser e Copa da Paz, e descreveu como a falta do futebol, causada pela pandemia está mexendo com ele:
“Sinto muita falta [do futebol]… Ele é minha calmaria, minha alegria, meu ganha pão. Sem ele não sei o que seria da minha vida. Graças a ele viajei por todo esse Brasil, morei na Europa e fiz grandes amizades! Futebol é minha vida, vivo e respiro ele! E já estou ficando sem ar de tanta falta que ele faz”, desabafou.
Caíque, de 32 anos, é zagueiro do EC Piauí, e depende dos jogos para pagar suas contas e afirma que nunca pensou que um dia passaria por uma situação como essa.
“Se um dia alguém me falasse que eu não poderia jogar futebol por causa de uma doença que atinge todas as pessoas, eu não acreditaria. Agora estou nessa, sem saber o que fazer. Eu dependo do futebol para viver e ajudar a minha esposa e meu filho. Está sendo muito difícil, não sei como vamos passar os próximos meses. Tenho que sair de casa todo dia e dar um jeito de conseguir um dinheiro, não dá para ficar parado”, afirmou Batata, seu apelido na várzea.
A Superliga Paulista de Futebol Amador, um dos torneios realizados na várzea, abriga 32 times, divididos em três categorias, a 18+, 28+ e 35+ e em quatro competições, a Copa da Liga, Master Liga, Supercopa Paulista e Premiere Liga. Um dos responsáveis pela organização da Liga, Flávio Saez, disse que os principais problemas causados pela paralisação foi a falta de remuneração dos prestadores de serviços.
“Árbitros, equipes de filmagens e jogadores foram os principais afetados, todos estão sem receber. Para a Superliga essa suspensão impactou na mudança de calendário que já estava totalmente planejado para esse ano, tanto na parte financeira quanto na questão de calendário. Não será possível realizar a competição integralmente no formato dos outros anos. Trabalhamos com muitos times envolvidos, e a preparação precisa ser feita de forma organizada e bem detalhada”, afirmou.
Flávio não acredita que a várzea seja capaz de realizar qualquer tipo de protocolo para o retorno das partidas.
“Não temos estruturas para fazer qualquer tipo de protocolo, não dá para dar nenhuma segurança ao atleta. Isso será mantido até sair uma vacina, estamos esperando um posicionamento oficial do Governo para anunciarmos o que acontecerá com a Liga”, concluiu.
Vale lembrar, que no dia 17 de julho, o Ministério da Cidadania publicou no Diário Oficial da União a regulamentação do bolsa-auxílio para atletas de rendimento não profissional. A bolsa-auxílio tem por finalidade dar suporte às despesas provenientes de treinamento e participação em competições esportivas, como alimentação, suplementação alimentar, hospedagem, uniformes e outros. Dessa forma, esses atletas estão incluídos no programa de auxílio emergencial do Governo Federal, podendo receber R$ 600 durante o período da quarentena.
“Esse auxilio foi aprovado para atletas não profissionais, o pessoal de várzea tem direito a esse auxílio. O atleta profissional é que não vai fazer jus a esse direito, por terem um contrato de trabalho registrado. Apesar de tudo, isso não é o melhor critério definidor para quem tem direito ao auxílio. Temos uma grande quantidade de atletas profissionais que recebem um salário mínimo e seriam merecedores de uma bolsa nesse momento, mas o Governo preferiu adotar esse critério. Pela lei do desporto, é profissional todo atleta que tem um contrato firmado com seu clube empregador”, conclui Mauricio.
Assim como Rodrigo Xuxa, que perdeu recentemente Carlinhos Anão, seu amigo e treinador do Jardim dos Estados, vítima da covid-19, Flávio viu seu pai ser internado e passar 15 dias no hospital lutando contra a doença, conseguindo alta somente na semana passada.
As principais competições do futebol de várzea, Super Copa Pioneer, Copa da Paz e Taça das Favelas, também estão suspensas e sem previsão de volta. As ligas organizadoras comunicaram da decisão por meio de avisos em seus sites e redes sociais.
A apreensão dos jogadores é geral e ela se dá pela incerteza. A mesma pergunta é compartilhada entre todos: quando será o retorno? Até o momento, o Brasil passou dos 103 mil óbitos causados pela covid-19, e a resposta para essa pergunta parece estar cada dia mais longe de ser respondida, uma vez que a doença parece ganhar força a cada dia.
Crédito imagem: Pixabay
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