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Jogando para torcida: o Grande Inquisidor e o caso do Sport Club do Recife

“Julga-nos se podes e te atreves.”

Os irmãos Karamázov, Dostoiévski

Há poucos dias, mais um episódio de violência envolvendo uma partida de futebol manchou as páginas dos jornais, desta feita com o sangue de atletas e membros da delegação do Fortaleza Esporte Clube, atingidos por objetos – e estilhaços de vidro – supostamente arremessados por indivíduos que, pelo que se apurou até o presente momento, seriam torcedores do Sport Club do Recife, equipe contra a qual aquela havia se batido horas antes.

Nada mais esperado – e justo – que clamores de justiça se fizessem ouvir logo em seguida, reverberados nas tantas transmissões televisivas, e de se ler nas redes sociais, praça onde mais do que justiça, pedia-se punição a qualquer custo, independentemente de quem fossem os culpados.

Atento a tal clangor, e embora não tenha apresentado qualquer denúncia contra o clube do qual os agressores seriam torcedores – o Sport Club do Recife, a Procuradoria-Geral de Justiça Desportiva do Futebol apresentou perante o Presidente do respectivo superior tribunal pedido para que a torcida do clube fosse impedida de assistir aos jogos da equipe no estádio, seja quando mandante das partidas, seja quando visitante. Sem fazer ouvidos moucos, o Presidente do STJD do Futebol acatou o pedido e deferiu a medida cautelar – cujo teor pode ser lido no próprio site do tribunal[1] – fundamentando-a nos arts. 119, 211, 213 e 283 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD, no inciso XI do art. 2º da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, no inciso XVI do art. 2º, e arts. 146, 149 e 158, todos da Lei 14.597, de 14 de junho de 2023.

Não há dúvidas de que o caso deve ser efetivamente esclarecido e os responsáveis julgados e, caso culpados, condenados. Porém, e como tenho apontado em diversas oportunidades, deve sê-lo de acordo com as regras processuais e materiais previamente estabelecidas, pois, do contrário, será mais um episódio em que não será Justiça o que se entregará, mas mero justiçamento.

Numa das mais emblemáticas passagens da literatura mundial, Dostoiévski constrói a chamada parábola do Grande Inquisidor. Não pretendo aqui esmiuçar sua relevância para a Literatura, e menos ainda o seu profundo e valioso conteúdo filosófico – o que, aliás, Hannah Arendt fez com proverbial maestria em Origens do Totalitarismo –, mas o presente caso traz laivos que relembram esse constructo do mestre russo.

Na conhecida parábola, cujo plano de fundo é a Sevilha do auge da Inquisição (Séc. XVI), depois de quinze séculos de espera, no dia seguinte a uma grande execução – de mais de cem hereges – retomando sua forma humana, Jesus se apresenta entre as milhares de pessoas que se apinham diante da catedral da cidade, sendo imediatamente reconhecido por muitos deles, inclusive por um cego, que o pressente e lhe pede que, como confirmação de sua natureza, Lhe pede que o cure, pedido que o Cristo atende. No adro da igreja, Jesus reproduz o milagre da ressureição; profere a sentença, ‘Talita cumi’, e a menina que jazia no pequeno caixão se senta ainda com flores que carregava entre os dedos, nas mãos, e sorri, para estupefação e glória de todos os presentes. Hosana. Passando pelo local no exato momento do milagre, o cardeal – que no dia anterior conduzira as execuções da centena de hereges, manda sua guarda prender o milagreiro, que então é levado para as masmorras onde, ao cair da tarde, é visitado pelo sumo executor da vontade divina, o Grande Inquisidor, ninguém mais que o próprio cardeal. Ali então se desenrola um dos diálogos mais interessantes já concebidos por um escritor em todos os tempos, e que se resume numa tentativa do cardeal não só de demonstrar ao redivivo os erros que cometeu ao não se render às tentações do Diabo quando de sua peregrinação no deserto, e os que comete na Via Crúcis, quando, apupado, não desce da cruz, mas, principalmente, do quanto o homem é fraco e inábil para lidar com a liberdade que o livre arbítrio acarreta, e dependente de alguém que o guie e o alimente, de pão e fé, algo que, segundo ele, a Igreja vem sabendo fazer há oito séculos, ou desde quando o poder e a autoridade passaram a recair sobre o Sumo Pontífice, em Roma. Ao final de sua prédica, após afirmar a Cristo saber quem Ele realmente era e que o adorara, o Grande Inquisidor lhe assevera que, já no seguinte, ao seu primeiro sinal, aquele rebanho obediente que ele visitara a pouco, passará a arrancar carvão quente para tua fogueira, na qual vou te queimar porque voltaste para nos atrapalhar. Porque se alguém mereceu nossa fogueira mais do que todos, esse alguém és tu. Mas essa condenação é quase incompreensível sem a chave principal dada por uma afirmação anterior da mesma personagem, que diz que existem três forças, as únicas três forças na terra capazes de vencer e cativar para sempre a consciência desses rebeldes fracos para sua própria felicidade: essas forças são o milagre, o mistério e a autoridade.

Há muito que Estado e religião se separaram, como há muito os jesuítas, fervorosos inquisidores, deixaram de agir ad majorem gloriam Dei, deixando de queimar as pessoas em praça pública para mero deleite da malta ensandecida e reforço da autoridade eclesiástica. E tal separação, conhecida como laicidade, se funda no – e é fundamento do – Estado [Democrático] de Direito, que tem na lei e na igualdade de tratamento perante ela alguns de seus pilares. Ela é A palavra. É dela, da lei, e não de um poder divino, ou divino-secular como o que o Grande Inquisidor alega possuir como representante da Igreja Católica, que se investem – e legitimam – certas pessoas como julgadores. E é nos termos da lei, previamente estabelecida, e em seus limites, que a legitimidade para figurar em processos – administrativos, mesmo os disciplinares, e os judiciais – deve ser aferida. Toda e qualquer extrapolação desses limites será usurpação e, como tal, ilegítima. Ou uma pretensão a incorporar um milagreiro que, realizando-o, desconstitua as bases do próprio sistema legal.

No caso do Sport Club do Recife, tanto a procuradoria quanto o Tribunal de Justiça Esportiva do Futebol atuam como o Grande Inquisidor da parábola, pois nada os legitima a atuar da forma como estão atuando. E isso fica claro quando a questão é vista não apenas por um ou outro prisma, como os da incompetência para processar e julgar a questão, ou o da responsabilidade penal objetiva e da Teoria do Domínio do Fato, mas por todos os ângulos. Todos levam à mesma conclusão, da crassa e manifesta ilegalidade da ação. Vejamos.

No Brasil, a competência da Justiça Esportiva encontra fundamento no § 1º do art. 217 da Constituição Federal de 1988, estando limitada à disciplina e às competições desportivas. Em seu art. 50, a norma que a regulamenta – a Lei Pelé – repete essa limitação material e acrescenta que a organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva serão definidos nos Códigos de Justiça Desportiva. Por seu turno, em seu art. 1º o CBJD estabelece taxativamente quem são os jurisdicionados desses enclaves da Justiça na seara esportiva, dentre os quais não figuram os torcedores, nem as chamadas torcidas organizadas, cuja definição é dada atualmente pelo § 2º do art. 178 da art.  Lei nº 14.597, de 2023, assim entendida como a pessoa jurídica ou existente de fato, que se organiza para fins lícitos, especialmente torcedor por organização esportiva de qualquer modalidade. E é o mesmo art. 178 dessa lei que, em seu § 3º, estabelece que a torcida organizada não se confunde com a organização esportiva por ela apoiada. Ou seja, torcedores e torcida organizada são coisas, infungíveis e inconfundíveis entre si, assim como torcida organizada não se confunde com o clube.

Nasce então a primeira indagação: se torcedor e torcida organizada não se confundem entre si, nem esta se confunde com a equipe a que apoia, como pode um clube – esse sim jurisdicionado pela Justiça Esportiva conforme at. 1º do CBJD[2] – ser arrolado como ‘réu’ e condenado a suportar uma decisão que, pelos seus próprios efeitos exaustivos, nada tem de cautelar? Parece-me que, senão por milagre, apenas para criar uma hipótese de legitimidade/competência que a lei não prevê, pois, do contrário, a conclusão há de ser que a Justiça Esportiva é absolutamente incompetente! Grande Inquisidor 1 x 0 Estado Democrático de Direito.

O segundo ponto que demonstra a manifesta ilegalidade da atuação da Justiça Esportiva nesse caso recai sobre o fato de que, ao separar as personalidades de uma e outra entidades (de fato ou de direito, no caso das torcidas organizadas), exceto na hipótese do § 2º do art. 183 da Lei nº 14.597, de 2023[3], o legislador não só afastou a possibilidade de que qualquer uma delas venha a ser objetivamente responsabilizada por ato de terceiro, como também que resta excluída a aplicabilidade da Teoria do Domínio do Fato, que a jurisprudência do STF até reconhece possível, mas desde que a denúncia aponte indícios convergentes no sentido de que o acusado não apenas tem, ou teve, conhecimento da prática da conduta delituosa como também que somou seus desígnios para que a prática se perpetrasse. Sem isso, por basear-se em mera conjectura ou criação mental da acusação, a denúncia será inepta[4]. Lembre-se que tal teoria não abrange quando se trata de crimes culposos[5], da mesma forma que não tem lugar para colmatar a falta de substrato probatório da autoria delitiva[6]. Grande Inquisidor 2 x 0 Estado Democrático de Direito.

Afastada a possibilidade de responsabilização objetiva, restaria a de responsabilização subjetiva, o que leva ao segundo questionamento: como uma entidade, cujos membros não participaram do ato delituoso, ocorrido a 7 km de distância da arena esportiva, numa rodovia federal sobre a qual não tinha qualquer ingerência ou obrigação de cuidado, e que, conforme previsto na lei (art. 178, § 3º, da Lei nº 14.597, de 2023), com ela não se confunde, poderia ser considerada responsável pelo ato imputado como infringente das regras disciplinares previstas no CBJD? Aliás, aqui nasce outra dúvida: dadas as características do fato, de acordo com o CBJD, qual a infração cometida pelo Sport Club do Recife que o legitime a figurar no pólo passivo?

Vale destacar que o próprio CBJD incorpora essa limitação ao recurso, pela acusação, da Teoria do Domínio do Fato para fins de responsabilização e da responsabilidade objetiva – art. 155 e 156-A, v.g, mas, especialmente, no art. 213, cujo § 3º prevê que o clube será eximido de responsabilidade se atuar para identificar e deter aqueles que promovem tumulto, invasão e/ou arremessam objetos no campo de jogo. E nada mais lógico, pois, nesses casos, não só legitimamente se espera que a entidade aja, como tem condições materiais para fazê-lo! o punível será sua omissão e não o fato de ter participado da desordem, ex vi do § 2º do mesmo art. 213 do CBJD. Nesse caso, seria punida por conduta comissiva.    

Ainda sob o enfoque do dever de agir, cabe registrar que o § 3º do art. 282 do CBJD prevê ainda que para os fins de aplicabilidade de seus preceitos, os termos “partida”, “prova” ou “equivalentes” compreendem todo o período entre o ingresso e a saída dos limites da praça desportiva, por quaisquer dos participantes do evento. Retomo a pergunta: como é possível conceber que o Sport Club do Recife possa ser responsabilizado, ou mesmo suportar os efeitos materiais negativos da pretensa decisão acautelatória se o fato ocorreu a quilômetros de distância do estádio? Nem se valendo da analogia[7] e adotando o largo limite fixado no § 1º do art. 11 da Lei nº 12.663, 5 de junho de 2012, Lei Geral da Copa, para estabelecer o limite territorial em que se considera a praça desportiva, esse fato estaria inserido na área espacial que legitimaria a atuação da Justiça Esportiva[8]. Grande Inquisidor 3 x 0 Estado Democrático de Direito.

Tal qual o Caso Wallace – de fatídicas consequências para o sistema esportivo, e que relembra os limites da competência da Justiça Esportiva – o caso é da alçada do poder público, não da Justiça Esportiva.

Nem sob a égide de um concurso de agentes o Sport Club do Recife poderia ser considerado responsável pelo fato e, portanto, condenado, pois sequer foi acusado, seja de conduta omissiva ou comissiva. Grande Inquisidor 4 x 0 Estado Democrático de Direito.

Embora já se tenha apontado motivos mais do que suficientes para demonstrar o manifesto ‘erro judicante’ por parte da procuradoria e do STJD do Futebol com o deferimento da medida cautelar, cabe ainda trazer à baila a questão do próprio descabimento da medida dita acautelatória. Medidas como essa, por natureza, têm caráter instrumental, servindo para resguardar o proveito que a tutela jurisdicional postulada visa alcançar. No presente caso, se, como disse o próprio Procurador-Geral de Justiça Esportiva em entrevista, não existe denúncia para penalizar o Sport Club do Recife[9] e, portanto, não há como condená-lo a nada, qual o proveito a ser assegurado por meio de tutela jurisdicional que a medida cautelar pretende preservar? Aparentemente nenhum! Logo, a medida acautelatória é infundada, servindo apenas, como visto, como sucedâneo de medida inexistente no CBJD, eis que voltada a conferir competência a quem não a tem e punir quem não está sob sua jurisdição, num verdadeiro jogar para torcida. Resta saber de quem? Certo que é que para a do Sport Club do Recife é que não é! Grande Inquisidor 5 x 0 Estado Democrático de Direito.

Acrescente-se a isso o fato de que a pretensa medida cautelar não apenas representa uma antecipação de uma pena que não poderá nunca ser imputada ao clube, pois inexistente a responsabilidade e a tipicidade esportiva, especialmente sem o devido processo legal substantivo, como tem efeitos materiais imediatos e que vão contra as garantias fundamentais, eis que não só impede que o clube possa vender ingressos cuja bilheteria tende a ser vultosa, como o são os da Copa do Brasil, incidindo, de forma manifestamente ilegal, num direito de propriedade, como também que torcedores que não participaram dos eventos sejam punidos por extensão, sem direito sequer à participação no julgamento. Há um malferimento de direitos, inclusive de ir e vir – e que podem ser reparados judicialmente[10] – perpetrado por uma decisão manifestamente ilegal que, como tal, smj, sujeita a própria Justiça Esportiva – quiçá seus membros – a um eventual dever de indenizar os lesados – especialmente o clube – pelos danos dela decorrentes.

Esses são apontamentos que dialogam com a razão, não com a fé, seja no que for, e que respeitam a autoridade da lei e do dever de interpretá-la nos limites da hermenêutica dos homens, que não espera milagres, e não adentra o campo dos mistérios insondáveis da crença em um poder superior àquele que os códigos conferem aos julgadores com a expectativa de uma autocontenção. Mas isso talvez seja apenas porque não tenha as pretensões de ser um Grande Inquisidor, que, a certa altura da conversa com Cristo, mesmo afirmando que persuadirá os homens de fé de que eles só se tornarão livres quando cederem sua liberdade à Igreja e se colocarem sob sua sujeição, não deixa de lançar a dúvida: E então, estaremos com a razão ou mentindo? O tempo e os autos do processo dirão, nem que isso signifique queimar Cristo na fogueira das vaidades, Ad majorem gloriam Dei[11]. Talvez, nesse momento, tal qual o milagre com a menina, Cristo profira, outra vez, a decisão declaratória ouvida pelos zombeteiros Anás e Caifás, Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Será? Bom, mas aí, já estamos entrando em outro livro, fora de minha alçada.  

Crédito imagem: Sport/Divulgação

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Pitágoras Dytz

Escritor, Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte

@pitagoras_dytz

[1] https://www.stjd.org.br/noticias/presidente-acolhe-pedido-de-portoes-fechados-ao-sport, acesso em 26 de fevereiro de 2024.

[2] O art. 24 do CBJD reforça os limites da competência da Justiça Esportiva em relação aos jurisdicionados e se restringe às competições esportivas disputadas e somente alcançados aqueles que são arrolados no propalado art. 1º, que não inclui torcedores.

[3] Smj, inaplicável em razão do veto ao caput do respectivo dispositivo.

[4] HC 127397, Segunda Turma STF, Relator Min. DIAS TOFFOLI, Julgamento: 06/12/2016, Publicação: 02/08/2017.

[5] HC 138637 AgR, Segunda Turma STF, Relator Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 10/10/2020, Publicação: 22/10/2020.

[6] AP 987, Órgão julgador: Segunda Turma STF, Relator Min. EDSON FACHIN, Julgamento: 25/09/2018, Publicação: 08/03/2019.

[7] O que é expressamente vedado pelo art. 283 do CBJD.

[8] Permitir-se responsabilização com tais características levaria a legitimar a Justiça Esportiva para além dos limites constitucionais e legais, chegando-se ao absurdo de que bastaria um indivíduo, vestido com a camisa de seu time, cometer um ato de violência a quilômetros da arena esportiva para que o clube viesse a ser apontado como potencial responsável.

[9] https://www.opovo.com.br/esportes/futebol/times/fortaleza/2024/02/23/nao-existe-denuncia-para-penalizar-o-sport-diz-procurador-do-stjd-apos-atendado-ao-fortaleza.html, acesso em 26 de fevereiro de 2024.

[10] Vale lembrar o caso dos torcedores do Sport Club Corinthians Paulista, que, em 2015, tiveram assegurado judicialmente o direito de ingressarem no estádio mesmo após a determinação da Conmebol de que os portões fossem fechados em razão dos acontecimentos na cidade de Oruro, na Bolívia, quando a torcedores da equipe atiraram rojões contra a torcida adversária, matando Kevin Espada, jovem de 14 anos.

https://www.uol.com.br/esporte/futebol/campeonatos/libertadores/ultimas-noticias/2013/02/27/seis-torcedores-ganham-na-justica-direito-de-assistir-jogo-do-corinthians-no-pacaembu.htm, acesso em 26 de fevereiro de 2024.

[11] “Para maior glória de Deus”, divisa da Ordem dos Jesuítas.

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