“Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas uma em torno do nariz e da testa.” Assim é descrita a máscara de Flandres no livro “Memórias da Plantação – episódios de racismo cotidiano”, da autora portuguesa Grada Kilomba.
Embora, oficialmente, a máscara fosse usada pelos senhores brancos para evitar que os negros escravizados comessem enquanto trabalhavam nas plantações, sua principal função, segundo a autora, seria a de implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca pode ser usada como um lugar de silenciamento e de tortura.
Confesso que sem o auxílio de um desenho contido no livro, mesmo com a ótima descrição da máscara feita pela escritora, eu dificilmente poderia conceber a existência de uma máscara dessa natureza. Por sorte, podemos nos valer da literatura especializada para nos transportar aos acontecimentos da época e tentar compreender como a moral vigente permitia ocorrências dessa natureza, que hoje seriam inimagináveis.
Esforço semelhante é exigido a qualquer pessoa que, no século XXI, tente imaginar uma regra escrita que exija que nenhum tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial seja permitida em quaisquer áreas olímpicas. Mesmo sem apresentar um desenho que ilustre a informação, asseguro: a regra existe. Descrita sob o número 50, é uma das 61 regras que compõem a Carta Olímpica atual.
Fonte principal das normas que definem o Movimento Olímpico, a Carta Olímpica foi idealizada para resumir o ideário do Olimpismo, dentre os quais destaco a amizade, a igualdade, a solidariedade e o “fair play” (jogo limpo).
Mais que uma filosofia esportiva, o Olimpismo é uma filosofia de vida, sendo imprescindível que a prática de tais valores ultrapasse as fronteiras das arenas olímpicas e influencie a vida de todos. Haveria momento mais propício do que a realização dos Jogos Olímpicos para levantar bandeiras em prol da igualdade e da compreensão mútua?
Clamar pelo fim do racismo, lembrando as lutas históricas do povo negro, não seria reforçar os ideais do Olimpismo? Aparentemente, não, se até mesmo ajoelhar-se no pódio ao receber uma medalha, poderia ser considerado um ato proibido, com consequências disciplinares ao atleta que assim o fizesse, segundo as regras divulgadas no início deste ano pelo Comitê Olímpico Internacional.
Após a morte violenta do americano negro George Floyd, que gerou protestos em todo o mundo durante o mês de junho, o Comitê Olímpico Internacional foi pressionado a se pronunciar quanto ao tema e declarou apoiar atletas que pretendam se expressar através de atos condizentes com os princípios da Carta Olímpica. Serão ventos de mudanças? O empoderamento do atleta, um dos pilares da Agenda 2020, regras ditadas pelo mesmo Comitê para este ciclo olímpico, exige mudanças, além dos discursos.
Mais do que tolerar gestos como a saudação do movimento ‘Black Power’, como a feita nos Jogos ocorridos na Cidade do México, em 1968, o Olimpismo precisa reconhecer que alguns movimentos se apoiam nas mesmas bases da Carta Olímpica e que nenhum conceito ou forma de interpretá-lo é permanente.
Que o gozo dos direitos e liberdades estabelecidos na Carta Olímpica, seja de fato assegurado, sem discriminação de qualquer tipo, seja por raça, cor, sexo, orientação sexual, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro status.