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Kant e Hegel não se entendiam sobre Direito Esportivo – a autonomia esportiva

Os fundamentos do Direito Esportivo (IV) – Kant e Hegel não se entendiam sobre Direito Esportivo – a autonomia esportiva

Ouço e leio diariamente que o fundamento da autonomia esportiva está no fato de que a Constituição Federal de 1988 assim definiu, no inciso I do art. 217, e ponto. Já não via qualquer rigor científico nessa afirmação e, para piorar, um dia li um pequeno artigo de Ives Gandra no jornal Lance! de 16-10-2014¹. Nele o autor insinuava que a autonomia esportiva havia sido inscrita no texto da Carta por conveniência de dirigentes de futebol e que o futuro presidente da República deveria promover uma limitação desse instituto por meio de uma emenda constitucional. Ou seja, bastaria retirar da CF o princípio da autonomia para que não só os supostos desmandos na área deixassem de existir, mas também, principalmente, para que o Estado retomasse o comando do setor [isso aparece de modo implícito].

O notório jurisconsulto da área tributária, conhecido especialmente por seu conservadorismo, está confundindo texto com norma. Erro comum entre os normativistas no direito. Prometo que, em outra edição da coluna em que trate diretamente do art. 217 da CF, rebaterei essa ideia.

Voltando à polêmica, vejam a armadilha com que se deparam aqueles que fundamentam a autonomia esportiva somente no fato – diga-se de passagem, importantíssimo – de que basta sua constitucionalização no Brasil. Um jurista em protesto contra o rebaixamento de um clube no campeonato nacional diz que, se assim sendo, que se retire o texto que garante o instituto lá da Carta.

Ora, essa afirmação me azucrina tanto que resolvi pesquisar acerca do tema na minha tese de doutorado². O fundamento da autonomia esportiva reside somente na sua positivação enquanto norma constitucional? Mais do que isso: por que devemos realmente defender a autonomia no esporte?

Antes de tentar responder a essas perguntas, lembre-se, fiel leitor que vem acompanhando meus textos por aqui, que venho falando sobre os fundamentos do Direito Esportivo e que, desde a coluna passada, escrevo sobre os seus princípios centrais: igualdade, especificidade e, agora, autonomia esportiva.

É fato que a autonomia resulta da necessidade de resguardo da igualdade no esporte de rendimento, da paridade de armas. A especificidade, a linguagem própria do esporte, é a principal base, portanto, para a necessidade do asseguramento da autonomia no esporte competitivo. Porém, faço-lhe um convite para uma pequena parada prévia ao retorno àqueles princípios que imantam a autonomia no esporte e para desafiá-lo com o seguinte dilema: autonomia para quem?

O francês Jean Loup – aquele que eu considero o pai fundador do Direito Esportivo –. já em 1930, ao comentar o que hoje chamamos autonomia esportiva, disse que:

Na regulamentação dos esportes há mais que um contrato, e os conselhos e comitês competentes têm realmente recebido os atletas que formam entre eles uma verdadeira república, o poder legislativo.³ [grifo meu]

Perceba que o autor está aqui a revelar que os atletas conformam uma “verdadeira república”. Isso quer dizer que eles são a base da organização esportiva e que, consequentemente, se caracterizam como portadores da autonomia no esporte.
Mas e as instituições esportivas, como os clubes, federações…? Também são autônomas?

Para falarmos sobre isso, devemos nos interessar pela filosofia, sim. Vamos, portanto, até o séc. XVIII e veremos que o filósofo Immanuel Kant escreveu acerca de uma autonomia geral que derivaria das autonomias individuais. Ocorre que aqui o autor alemão não estava obviamente falando sobre Direito Esportivo – que nem existia à época. Discorria acerca da autonomia universitária:

[…] por assim dizer de modo industrial em que, graças à divisão do trabalho, se nomeariam tantos mestres públicos, professores, quantos os ramos das ciências; seriam eles como que os seus depositários, formariam em conjunto uma espécie de entidade colectiva erudita, chamada universidade (ou escola superior), que teria a sua autonomia (pois só eruditos podem, enquanto tais, julgar eruditos).

O que Kant está ensinando no texto transcrito é que o conjunto de professores e suas autonomias individuais conformariam a autonomia institucional, a autonomia da universidade. E reparem bem na expressão: “pois só eruditos podem, enquanto tais, julgar eruditos”. Aqui está um enclave no pensamento kantiano acerca da autonomia.

Contudo, se vamos um pouco depois na história, outro autor prussiano, G. Hegel, notabilizou-se por buscar no Estado a realização da racionalidade, de modo que não concebia a liberdade fora do Estado, mesmo reconhecendo a importância da sociedade civil. Muitos buscam interpretar a filosofia hegeliana como um estatismo, com a prevalência do universal sobre as individualidades.

É claro que nem Kant nem mesmo Hegel tratavam de Direito Esportivo em seus textos. Acredito que nem mesmo se dedicavam a analisar o fenômeno esportivo, tão pouco interessante em seus tempos. Ainda assim, eram perspicazes analistas da organização social, da estruturação da sociedade, e vão nos basear no estudo sobre a autonomia esportiva.

Se Kant se preocupava em garantir a produção autônoma do saber por meio do resguardo da autonomia universitária, assim livre de ingerências políticas ou de outros meios, Hegel enxergava no Estado a realização da liberdade, a consecução da racionalidade.

A autonomia esportiva, assim como a autonomia universitária, advém das autonomias individuais (atletas, associados de clubes, dirigentes…). Podemos, nesse sentido, estar ao lado de Kant e Jean Loup.

Ademais, como ocorre com “liberdade de cátedra”, a especificidade do esporte demanda autonomia na definição das regras de competição e na gestão esportiva.

Mas muitos hegelianos desconfiariam de uma organização autônoma do esporte, já que não realizada por intermédio do Estado. Haveria aqui um sentido mais intervencionista, estatista, antiautonomia esportiva mesmo.

Esse até hoje é o pano de fundo filosófico que permeia a disputa em torno do princípio da autonomia esportiva, caro leitor. Vamos ter que voltar a esse tema na próxima semana. Aprofundar um pouco mais o assunto e continuar a responder às perguntas que eu mesmo lancei.

Até lá!

……….

¹ Disponível em: www.ndonline.com.br/florianopolis/esportes/academia-lance–e-preciso-rever-a-lei-pele-e-o-texto-constitucional.
² CAMARGOS, Wladimyr Vinycius de Moraes. A constitucionalização do esporte no Brasil: autonomia tutelada: ruptura e continuidade. 2017. 188 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/24077.
³ LOUP, Jean. Les sports et le droit. Paris: Dalloz,1930. pp. 103-104.
⁴ KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Trad. Artur Morão. Covilhã — Portugal, Universidade da Beira Interior, 2008. p.p. 27-28.

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