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Lakers v. Celtics – o licenciamento de direitos personalíssimos nos jogos eletrônicos e a problemática brasileira

Recentemente, fui convidado por dois amigos a participar de um podcast sobre jogos antigos, chamado Triple Threat of Games. Na verdade, sobre jogos anteriores aos anos 2000. O debate consiste em discutir sobre 3 (três) jogos (daí o nome), não necessariamente da mesma época, e ranqueá-los em 5 (cinco) categorias, a fim de ver quem é o campeão da vez. No dia, o debate era entre:

                        – Final Fantasy IX – PS1 – 2000;

                        – Super Metroid – SNES – 1994; e

                        – Lakers v. Celtics – PC MS-DOS – 1989.

Ao primeiro olhar, com clareza Lakers v. Celtics perderia, de lavada, aos demais. Mas era minha obrigação estudar sobre o jogo, a fim de fomentar o debate e entender qual seria o papel dele ali, ao lado de dois épicos da história dos games, naquele episódio.

E não bastou muito para descobrir que esse jogo, cujo nome completo é Lakers v. Celtics and the NBA Playoffs foi o primeiro caso de licenciamento coletivo de direitos de uma liga esportiva, equipes e seus atletas, a um jogo eletrônico.

Quem era a Publisher e desenvolvedora do jogo? Eletronic Arts (EA).

Bastou essa descoberta para elevar – e muito – o ranking do jogo. Afinal, possibilitar ao fã, ainda na década de 1980, jogar com uma de suas equipes favoritas da NBA, simulando o ápice de tal competição esportiva (playoffs – fase final), com os dois maiores times do momento na capa?

Contextualizando, a década de 1980 da NBA ficou marcada pela enorme rivalidade entre o Los Angeles Lakers, de Magic Johnson, Kareem Abdul-Jabbaar e outros, contra o Boston Celtics, de Larry Bird, Kevin McHale e outros.

Embora o destaque seja para tais equipes, dominantes em todas as vertentes à época, o nome do jogo não pode ser ignorado: (…) “and the NBA Playoffs”. Outras 6 (seis) equipes seriam adicionadas ao jogo, completamente licenciadas. Uma destas era o Chicago Bulls de ninguém mais, ninguém menos, que Michael Jordan.

Sim. Jordan. Ali, disponível, para ser jogado por qualquer um que quisesse escolhê-lo.

E mais: guardadas as limitações da época – os gráficos e a jogabilidade não são, nem de longe, os atrativos do jogo –, cada boneco carregava as características (likenesses) dos jogadores reais, sendo perfeitamente possível distingui-los e fruir de suas peculiares habilidades em quadra. Jordan, por exemplo, era um fenômeno nas enterradas. Bird, acertava todos os arremessos. Magic, fazia de tudo. E, de quebra, Kareem Abdul Jabbaar tinha o gancho característico (sky Hook), sua marca registrada, reproduzido no jogo.

Impossível negar o imenso legado de um jogo desses. É, literalmente, uma ruptura absoluta. Até então, eram apenas simples jogos de basquetebol e de outros esportes. Agora, era um jogo da NBA, com Magic, Bird, Jordan e tudo mais.

Vale dizer que Lakers v. Celtics não foi o primeiro jogo a ter licenciamento de imagem, marca e/ou direitos personalíssimos. Trata-se de prática antiga, muito anterior ao advento dos videogames e jogos eletrônicos. Aos jogos, porém, atribui-se ao Raiders of the Lost Ark (1982), lançado para Atari, como o primeiro oficialmente licenciado por um filme. O primeiro jogo com temática esportiva a conter licença – no caso, por parte dos dois atletas envolvidos, também de basquete – foi o Dr. J and Larry Bird Go One on One (1983), lançado pela própria Eletronic Arts.

Contudo, o que torna Lakers v. Celtics tão fascinante e inédito é o caráter coletivo de seu licenciamento, via liga esportiva (NBA). A ideia do jogo foi, literalmente, reproduzir a ambientação e a competitividade da NBA. O jogo contém, por exemplo, elementos de transmissão televisiva, a fim de que o jogador realmente se sinta dentro de uma partida real.

Assim, a despeito de seu lançamento em 1989 ter sido exclusivamente para PC (sistema MS-DOS), o jogo foi posteriormente lançado para outras plataformas, atualizado de acordo com os atletas e equipes presentes nos playoffs dos anos subsequentes da NBA. Em 1991 e 1992, o nome foi substituído para os novos finalistas: Lakers v. Bulls e Blazers v. Bulls, respectivamente.

A partir daí, lançar um jogo esportivo sem as licenças oficiais adequadas se tornou um retrocesso. Vários foram os títulos que começaram a chegar às prateleiras das lojas.

É importante salientar que no âmbito da NBA, o licenciamento coletivo dos direitos personalíssimos dos atletas é realizado mediante acordo coletivo firmado entre a liga e o sindicato profissional (NBA Players Association). Inobstante, é possível ao atleta, individualmente, optar em deixar o aludido acordo (opt-out). O próprio Michael Jordan fez esse movimento de saída entre 1996 e 2003, período em que não mais apareceu nos jogos licenciados, mesmo sendo atleta profissional vinculado à NBA.

E no Brasil?

Por aqui, os direitos personalíssimos, como voz, imagem, nome, reprodução de habilidades e características que identifiquem a persona – algo bem sintetizado em name and likenesses, do inglês – são individuais, intransmissíveis e irrenunciáveis. Sua disciplina encontra proteção constitucional, no artigo 5.º, X e V, e no Código Civil, artigos 11 a 21 (Capítulo II). Não há, na legislação civil desportiva brasileira vigente qualquer previsão especifica a viabilizar a negociação conjunta, em nome dos atletas.

Dessa feita, no Brasil, o uso dos direitos personalíssimos de atleta somente pode ocorrer mediante autorização individual, expressa e com finalidade específica. Trata-se de algo sobre-humano, afinal, segundo informações trazidas pelo O Globo, são mais de 18 mil atletas profissionais registrados no Brasil apenas no futebol.[1]

Assim, diferentemente do que ocorre nos EUA, na Europa ou no Japão, por exemplo, é duvidosa, até mesmo, a validade de um possível acordo ou convenção coletiva, encabeçado entre entes sindicais e ligas desportivas, prevendo o licenciamento conjunto de atletas profissionais por eles representados, em nome de toda a categoria. Não há segurança jurídica no Brasil para tanto, mesmo diante da força constitucional à negociação coletiva sindical – artigos 7º, XXVI e 8º, III –, pois os direitos da personalidade estão alçados ao status de cláusula pétrea constitucional, cf. artigos 5º, X e V, e 60, § 4º, IV, da própria Constituição da República[2].

Nesse panorama, uma negociação em bloco somente seria viável por meio de empresas que venham a congregar os direitos de imagem dos atletas, contratando individualmente com eles (e os remunerando para tanto). Na prática, esse papel, atualmente, fica com os clubes, os quais, muitas vezes, por deterem contratos de licenciamento e uso dos direitos de imagem e personalidade, nos moldes do artigo 87-A da Lei Pelé, conseguem exercer a figura de intermediários de fato entre os interessados e o atleta licenciante.

Mesmo assim, a problemática decorrente do direito pátrio obriga as publishers e desenvolvedoras interessadas em ter os atletas brasileiros, atuantes no Brasil, em seus jogos, a serem conservadoras.

Isso porque a própria Eletronic Arts, no Brasil, sofreu inúmeras ações judiciais de atletas que alegaram uso indevido de sua imagem, nome e demais direitos da personalidade, cuja discussão é ampla, tema para um novo artigo.

De qualquer modo, a resposta da EA à enxurrada de ações foi, simplesmente, de retirar os times e o Campeonato Brasileiro de seus jogos, em evidente e inevitável depreciação ao produto nacional.

Há, ainda, o Football Manager da SEGA, jogo que não é comercializado no Brasil, mas que contém nomes e características de jogadores brasileiros, cuja discussão também está em pauta no Judiciário. Precisamente, são tantas demandas envolvendo a temática, que os processos envolvendo a SEGA, a EA e a KONAMI (publisher japonesa) estão suspensos nacionalmente desde dezembro de 2021, num Incidente de Demandas Repetitivas – Tema nº 45 do TJ-SP[3] –, em conformidade à decisão do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça (SIRDR nº 10 e nº 79/SP)[4].

Toda a celeuma leva a um absoluto esvaziamento da presença dos clubes, atletas e ligas brasileiras dos jogos eletrônicos.

Hoje (2023), o único game que detém licença oficial de equipes brasileiras em modalidades coletivas é o eFootball, da KONAMI. Na versão mobile, utilizada para este artigo, o jogo conta com apenas 6 (seis) times nacionais com jogadores licenciados.[5]

Portanto, se por um lado o jogo Lakers v. Celtics and the NBA Playoffs deixou um gigantesco legado na indústria de jogos eletrônicos esportivos, abrindo um mercado sem precedentes para publishers, federações, ligas, equipes e atletas em todo o mundo, por outro o mercado desportivo nacional continua engessado, estagnado num arcabouço legislativo incoerente à realidade do setor e que, inevitavelmente, deságua em incessantes e desestimulantes debates judiciais, cujo resultado é prejudicial a todos os envolvidos.

Para quem quiser seguir com a leitura:

https://lexsportiva.blog/2020/07/22/easportsvimagerightsinbrazil/ (em inglês).

Crédito imagem: Getty Images/NBA

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[1]https://oglobo.globo.com/blogs/ancelmo-gois/post/2022/11/brasil-tem-622-mulheres-e-18-mil-homens-como-atletas-profissionais-de-futebol-aponta-levantamento-da-cbf.ghtml.

Acesso em 05 abr 2023.

[2] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: […] IV – os direitos e garantias individuais.

[3] IDRD nº 0011502-04.2021.8.26.0000 – TJ/SP. https://www.tjsp.jus.br/NugepNac/Irdr/DetalheTema?codigoNoticia=68291&pagina=1. Acesso em 05 abr 2023.

[4] Decisão disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=141816783&tipo_documento=documento&num_registro=202102066120&data=20211214&tipo=0&formato=PDF.

[5]https://www.konami.com/efootball/en/page/license_efootball. Acesso em 05 abr 2023.

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