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Legitimar e legalizar uma decisão da Liga Francesa de Futebol; como o governo tentou salvar uma decisão contestável da Liga

Por Brice Beaumont

“A modificação, no decorrer da competição, do regulamento dos campeonatos profissionais franceses não incumbe do poder regulamentar da Liga de futebol profissional[1], e devia ter sido previamente autorizado por lei”. Eis um dos argumentos apresentado pelo Toulouse FC perante o juiz administrativo do Conselho de Estado[2], para pedir a suspensão da decisão da Liga.

Apesar desse argumento não ser levado em consideração pelo Conselho de Estado, a questão da competência da Liga e do embasamento legal de sua decisão já era uma preocupação do governo ao declarar que o futebol não poderia retornar antes do mês de setembro 2020.

Na França, para o governo poder adotar um decreto-lei, o Congresso deve previamente conceder uma autorização legislativa provisória ao poder executivo através de um projeto de lei. Devido a crise sanitária, o governo submeteu nessa intenção um projeto de lei que está em tramitação na Assembleia Nacional[3]. Esse projeto de 141 páginas contém uma grande diversidade de pedidos de autorização pelo governo, relacionados ao direito do trabalho, funcionamento da justiça, consequências do Brexit, entre outros. Interessante destacar que dessas 141 páginas, são apenas 6 linhas que chamam a atenção dos especialistas em direito desportivo : “O Governo está autorizado a decretar por decreto-lei as medidas que permitem a modificação (…) dos regulamentos relativos a duração e a organização das competições para a temporada 2019/2020 (a atual nde), e 2020/2021, modificando e adaptando as competências e os poderes das federações e das ligas profissionais”. Ou seja, com essa lei, o governo teria a possibilidade de mudar os poderes da liga e da federação, e o calendário esportivo das competições.

Adaptar os regulamentos esportivos à urgência sanitária é uma necessidade. Especialmente quando os regulamentos não preveem situações de pandemia. No entanto, a sutileza reside aqui na retroatividade dos efeitos dos decretos-leis, resultantes das autorizações desta lei.

“Essa retroatividade se justificada, como enfatiza o Conselho de Estado, pela condição de necessidade atual (…)”, explica o relatório da comissão da Câmara dos Deputados, encarregada de examinar a lei. Ainda que seja compreensível para o exercício do seu poder soberano, e como diz a lei para preservar a “continuidade dos serviços públicos”, esse argumento pode surpreender quando se trata da interrupção do futebol francês. Havendo essa retroatividade, o governo teria a possibilidade por decreto-lei de decidir que desde o dia 12 de março o Conselho de Administração da Liga podia alterar o “Regulamento das competições”.

Além de ferir o princípio de irretroatividade da lei, princípio segundo o qual os efeitos de uma nova lei são válidos a partir de sua data de publicação, não considerando situações já consolidadas na vigência da lei anterior, o governo atribui retroativamente um poder a Liga que não o possuía quando optou para o encerramento do campeonato, a fim de corrigir qualquer excesso de poder e dar um embasamento legal a sua decisão. Relembrando que, a decisão contestada do Conselho de Administração da Liga de encerrar o campeonato foi tomada no dia 30 de Abril. Ou seja, um mês e meio depois da data de início dos efeitos de um eventual decreto-lei.

Para corroborar esta primeira constatação, basta ler novamente o relatório da comissão da Câmara dos Deputados: “o governo parece querer criar um enquadramento jurídico que, derrogando temporariamente o princípio da anualidade das temporadas esportivas (como definido no Código do Esporte)”, a fim de “tomar nota e tirar as consequências do fechamento prematuro da temporada esportiva 2019/2020”.

Não é uma mera coincidência, pois a Ministra Francesa dos Esportes, Roxana Maracineanu, afirmou na imprensa que um projeto de lei estava sendo encaminhado para o Senado:  “O que estamos fazendo é fortalecer as decisões das federações para que elas possam mudar seus regulamentos sem que seja considerado que elas excederam seus poderes ou não respeitaram o princípio da legalidade “. Porém, ela reconheceu que essa lei não poderia impedir os clubes de intentarem uma ação – o que seria inconstitucional. “Se eles querem ir ao tribunal, deixe-os ir” afirmou a Ministra.

No entanto, o cenário do governo não ocorreu como planejado. O Senado aprovou com mudanças o projeto de lei, reduzindo o escopo e as áreas de várias autorizações e atrasando de fato a sua aprovação. Em respeito ao esporte, foram invalidados os pedidos iniciais do Governo relativos a duração e a organização das competições para a temporada 2019/2020 e aos poderes das federações e das ligas profissionais, deixando apenas a autorização legislativa relativa aos contratos de atletas de treinadores.

Além do mais, as últimas mudanças no projeto foram apenas aprovadas pela Câmara essa semana, faltando sua promulgação pelo Presidente da República – que ocorrerá nos próximos dias ou semanas. Sobretudo, essa promulgação acontecerá depois do Juiz do Conselho de Estado ter prolatado nesta segunda-feira 8 de Junho a sentença tão esperada pelos torcedores, acolhendo os pedidos de Toulouse e de Amiens e rejeitando os de Lyon.

Cabe agora a Liga cumprir suas obrigações decorrentes da sentença. Rever o formato da Serie A do campeonato francês e propor um novo calendário da nova temporada com 22 clubes. “Não é o Conselho de Estado que diz que se devemos jogar com 20 ou 22 clubes. Essa decisão pertence a Liga e a Federação”, comentou assim que noticiado o Diretor Geral da Liga, Didier Quillot. A Liga tem até dia 30 de Junho como prazo dado pelo Juiz. Clubes já avisaram por meio dos seus advogados que fariam um pedido de medida liminar caso a Liga não respeitar a sentença.

Uma questão processual permanece. Antes de recorrer perante o Tribunal Administrativo de Paris, e em seguida no Conselho de Estado, os clubes tinham a possibilidade de passar por uma fase de conciliação perante o Comitê Olímpico Francês. Foi a escolha que fizeram mais de quarenta clubes de futebol amador antes de intentar uma ação. No entanto, os três clubes profissionais, Amiens SC, Lyon e Toulouse, não solicitaram essa mediação que prolongaria por mais um mês a duração do processo judicial. Cabe interpretar se a intenção dos Clube era de obter uma decisão do juiz do Conselho de Estado antes da promulgação do referido projeto de lei, e de seus decretos-lei decorrentes.

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[1]  Liga de futebol profissional: Liga francesa de futebol.

[2] Conselho de Estado ou “Conseil d’Etat” em francês: último grau da justiça administrativa, equivalente a um Superior tribunal administrativo.

[3] Assembleia Nacional: Câmara Francesa dos Deputados.

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Brice Beaumont é doutorando em direito desportivo, fundador da OTSA e ex-jurista no Amiens SC (clube da série A da França).

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