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LGPD e a monitorização das informações pessoais dos atletas

A Lei n. 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – é o diploma normativo brasileiro que dispõe acerca das atividades de tratamento de dados pessoais realizadas em meios físicos ou digitais, por pessoas de direito público ou privado. Dentre outros aspectos, define bases legais autorizadoras do tratamento de dados pessoais, inaugura direitos subjetivos correspondentes e estabelece requisitos e finalidades específicos, que vinculam a atuação de agentes desenvolvedores de atividades de tratamento de dados pessoais.

Essa disciplina legal surge em um contexto marcado pela revolução das tecnologias da informação e da comunicação e consubstancia o objetivo de conferir tutela jurídica específica ao tratamento de dados pessoais, compreendidos, nesta análise, como uma projeção da personalidade do indivíduo. É importante ressaltar, nesse sentido, a previsão legal dos fundamentos da  tutela de dados pessoais: a) o respeito à privacidade; b) a autodeterminação informativa; c) a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; d) a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; e) o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; f) a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e g) os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

O respeito à privacidade e à autodeterminação informativa, decorrentes do direito da personalidade protegido pela Constituição Federal, foram positivados no art. 2º, I e II da LGPD, como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados pessoais. Frise-se que a proteção normativa salvaguarda justamente o titular de direitos contra os riscos decorrentes da coleta, processamento, circulação e transferência dos seus dados pessoais. Trata-se de um marco legislativo no Brasil na medida que inaugura a efetiva proteção de dados pessoais, tendo em vista que a proteção constante na Constituição Federal é genérica.

Considerando dado pessoal toda informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável, a LGPD se aplica a qualquer operação de tratamento realizado por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que: I – a operação de tratamento seja realizada no território nacional; II -a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou  III – os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional[1].

Em outras palavras, qualquer operação realizada com dados pessoais, como a que envolva, isolada ou conjuntamente, produção, recepção, reprodução, transmissão, modificação ou distribuição, deve encontrar-se previamente legitimada pela configuração de ao menos uma das bases legais estipuladas no art. 7º, da LGPD, dentre as quais se destaca, para os fins deste estudo, o fornecimento de consentimento pelo titular de direitos e a execução do contrato de trabalho de que é partícipe o titular dos dados objeto de tratamento.

Tendo em vista que todas as pessoas naturais e jurídicas que realizem tratamento de dados pessoais são destinatários da LGPD, tanto as entidades de prática desportiva quanto as entidades de administração do desporto a ela estão submetidas e deverão observar os ditames legais no tocante aos dados de torcedores, sócios e empregados. Para cada atividade de tratamento de dados pessoais desempenhada deverá corresponder a conformação de um arranjo institucional adequado, que garanta não só observância dos requisitos legais e regulatórios especificamente aplicáveis, mas também a habilidade de demonstrar às autoridades competentes que o agente de tratamento de dados oferece plataforma confiável da perspectiva do titular de direitos.

De acordo com a advogada Fernanda Soares[2], há dois cenários para a entrada em vigor da LGPD: o primeiro com a entrada em vigor no dia 03/05/2021. Este cenário foi estabelecido pela MP 959/2020. Na hipótese da MP não ser convertida em lei, prevalecerá o segundo cenário, com a entrada em vigor em 16/08/2020. Em ambas as hipóteses de vigência da LGPD, as sanções administrativas só poderão ser aplicadas em 01/08/2021. Em que pese a lei ainda não estar em vigor, já é possível verificar os seus efeitos em determinados setores da sociedade.

A proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais é um direito fundamental no âmbito da União Europeia. O artigo 8º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o artigo 16.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelecem que todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito. Tal preceito, decorrente do ajuste do Tratado de Lisboa, inaugurou a base legal que ensejou a adoção do Regulamento Geral de Proteção de Dados (UE 2016/679), em que estabelecidas regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, com observância da defesa dos direitos e as liberdades fundamentais das pessoas singulares e à proteção dos dados pessoais[3].

Sabe-se que, de acordo com o sistema vigente no âmbito da União Europeia, o processo de transposição do conteúdo de diretivas por cada Estado-Membro supõe algum grau de discricionariedade. Erigindo essa circunstância como um de suas forças motrizes, a adoção do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) sucedeu longos debates legislativos e buscou, justamente, modernizar e harmonizar a legislação europeia a fim de garantir segurança jurídica à proteção de direitos fundamentais no contexto dos desafios econômicos e sociais inaugurados pela era digital. As regras então dispostas almejaram o desenvolvimento de antigos princípios e direitos balizadores da proteção ao tratamento de dados pessoais e importaram na introdução de novas obrigações, como, por exemplo, a necessidade de que agentes dedicados ao tratamento de dados pessoais nomeiem intermediários que estabeleçam diálogo com titulares de direitos e as entidades reguladoras pertinentes (European Union Agency for Fundamental Rights and Council of Europe, 2018, p. 29).

No tocante às relações laborais, o art. 28 da referida lei estabelece que o empregador pode tratar os dados pessoais dos seus trabalhadores para as finalidades e com os limites definidos no Código do Trabalho e respectiva legislação complementar ou noutros regimes setoriais, com as especificidades estabelecidas no referido artigo. Salvo norma legal em contrário, o consentimento do trabalhador não constitui requisito de legitimidade do tratamento dos seus dados pessoais: a) Se do tratamento resultar uma vantagem jurídica ou econômica para o trabalhador; ou b) Se esse tratamento estiver abrangido pelo disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD.

As imagens gravadas e outros dados pessoais registrados através da utilização de sistemas de vídeo ou outros meios tecnológicos de vigilância à distância, nos termos previstos no artigo 20.º do Código do Trabalho, só podem ser utilizados no âmbito do processo penal. Nos casos previstos no número anterior, as imagens gravadas e outros dados pessoais podem também ser utilizados para efeitos de apuramento de responsabilidade disciplinar, na medida em que o sejam no âmbito do processo penal.

O tratamento de dados biométricos dos trabalhadores só é considerado legítimo para controle de assiduidade e para controle de acessos às instalações do empregador, devendo assegurar-se que apenas se utilizem representações dos dados biométricos e que o respectivo processo de recolha não permita a reversibilidade dos referidos dados.

Em Portugal o tratamento de dados dos atletas deve ser conciliado com o que prevê o Contrato Coletivo outorgado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (CCT-LPFP-SJPF), o Código do Trabalho (CT) e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), tendo em mente as situações de tratamento invocadas pela entidade empregadora, os direitos e deveres do jogador profissional[4].

É importante destacar determinadas características que são próprias da prática desportiva e as peculiaridades do contrato especial de trabalho desportivo.

O desporto faz parte do cotidiano do ser humano há milênios. O que antes era encarado como um jogo, sendo este acessível e praticado tanto por crianças quanto por animais, passou a ter regras pré-estabelecidas e a ser encarado com seriedade. O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de limites pré-estabelecidos de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas rigorosamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo e acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente na “vida quotidiana”[5].

Ensina Manuel Sérgio que o desporto é uma ciência, a necessidade de uma filosofia que analise as condições de validade da conduta motora de características simultaneamente lúdicas e agonísticas[6].

Uma das propriedades básicas da prática desportiva é a normatividade, isto é, uma atividade sujeita a normas jurídicas e morais pré-estabelecidas, as quais pretendem canalizar a energia libidinal agressiva.

As regras do desporto (e até mesmo as do direito desportivo) surgiram a partir de uma atividade elaborada pela própria sociedade, desenvolvida de forma espontânea e independente da atividade técnica dos corpos legislativos oficiais, sendo que o direito que surge desta atividade espontânea da sociedade é definido por Oliveira Viana como o direito-costume, o direito do povo-massa, desconhecido e ignorado propositalmente pelas elites, nada obstante, em alguns momentos, sejam compelidos a reconhece-los e a legaliza-los[7].

O Direito do Trabalho ordinário não se coaduna com o a realidade do desporto, razão pela qual a prática social naturalmente criou um ordenamento próprio, capaz de abranger um regime diferenciado para o trabalho desportivo.

Esse histórico demonstra as peculiaridades do desporto e acabam refletindo no contrato especial de trabalho desportivo (CETD), assim denominado pela própria Lei Pelé (Lei n. 9.615/1998). Nota-se, portanto, que em razão das especificidades da prática desportiva o legislador se viu compelido a formular normas distintas daquelas aplicadas para o trabalhador ordinário.

A atividade do atleta profissional é regida pela Lei Geral do Desporto e não pela CLT, sendo que esta somente será aplicada de forma subsidiária e apenas quando não houver incompatibilidade com os princípios do desporto, conforme previsão constante no art. 28 § 4º da Lei Pelé.

O CETD tem características próprias e deverá ser celebrado, obrigatoriamente, de maneira formal mediante a elaboração de um contrato de trabalho, com período de duração mínimo de 3 meses e máximo de 5 anos[8]. Após o registro do referido contrato na respectiva entidade de administração do desporto terá início o vínculo desportivo.

Até mesmo rubricas trabalhistas clássicas sofrem severas restrições quando transportadas para o desporto. À guisa de exemplo, o tempo de trabalho sofre limitação semanal e não diário; o repouso semanal remunerado pode ser concedido dentro do próprio clube, com treino regenerativo, sem que tal fato seja configurado como tempo à disposição do empregador; o adicional noturno, via de regra, não é devido, assim como a equiparação salarial.

O próprio poder disciplinar do empregador tem características próprias, conforme assinala, tendo em vista que no contrato de trabalho desportivo raramente se verificam despedimentos, na medida em que o praticante desportivo constitui um “ativo patrimonial”[9].

Os deveres do atleta estão enumerados no artigo 35 da Lei Pelé. A saber: a) Participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas; b) Preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva; c) Exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.

Não se trata de um rol exaustivo de deveres, tendo em vista que o atleta profissional, além dos deveres acima mencionados, também deve observar a obediência, diligência e fidelidade, esta última entendida como respeito ao caráter ético da relação contratual.

Até mesmo fatores “extracampo” podem afetar o regular desempenho da atividade do atleta, ou seja, este poderá ser punido em razão de conduta praticada fora do período em que está à disposição do empregador, fato este que raramente poderia ocorrer na vida de um trabalhador comum.

Desta forma, conclui-se que, ao contrário do que ocorre com os demais trabalhadores celetistas, o atleta profissional, além dos deveres inerentes ao desempenho da atividade desportiva, possui obrigações “extracampo”, envolvendo sua alimentação, ingestão de bebidas alcoólicas, descanso, prevenção de lesões, restrição de uso de medicamentos, dentre outras[10].

Há, portanto, uma possibilidade de ingerência, por parte do empregador, que extrapola a vida profissional deste trabalhador e que invade a sua esfera pessoal, sem que tal fato, contudo, se configure ato ilícito, na medida em que é justificável pela natureza da atividade desempenhada.

O contrato de trabalho desportivo é especial em razão da necessidade de se compatibilizar o aspecto laboral com o aspecto desportivo. O grande desafio, porém, é o de conciliar essa intromissão na vida íntima do atleta com a preservação da dignidade da pessoa humana e da liberdade individual. Trata-se de uma tarefa complexa, mas não impossível. Deve haver a harmonização da boa-fé, proporcionalidade, adequação, necessidade e legítimo propósito.

Resta saber se a utilização de mecanismos tecnológicos destinados a este controle da vida privada do atleta, em especial na véspera da realização da partida, configura conflito entre os direitos e deveres recíprocos das partes envolvidas.

O trabalho do atleta profissional não se encerra com a competição ou disputa da partida, pois as longas sessões de treinamento e preparação requerem grande esforço e disciplina.

O acompanhamento cuidadoso dos períodos de descanso se configura em medida estratégica para manter a performance desejada daquele atleta.

A LGPD prevê a possibilidade de tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para o exercício regular do contrato[11].

Com efeito, a realização de coleta de informação pessoal deve estar respaldada em uma finalidade para, em função dela, se determinar a natureza necessária e não excessiva da informação pessoal recolhida. “A imposição do princípio da finalidade ao consentimento assenta na necessidade de proteger situações em que o primeiro esteja por natureza limitado”[12].

Tal situação é a que ocorre com o atleta profissional, tendo em vista que dados relacionados ao descanso, como a qualidade do sono, por exemplo, são informações essenciais para a sua recuperação, cabendo ao clube empregador a utilização desses dados para aferir se no dia de repouso o descanso foi suficiente para viabilizar o início de um novo ciclo de treinamentos.

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[1] Art. 3º da LGPD, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm#. Acesso realizado em 04.08.2020

[2] Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-lei-geral-de-protecao-de-dados-lgpd-no-futebol/. Acesso realizado em 01.08.2020.

[3] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32016R0679. Acesso realizado em 01.08.2020.

[4] SILVA, Jerry. O Futebol e a Monotorização do Sono. O jogador e a proteção de dados pessoais. Mediapromo. Vila Nova de Gaia : 2019, p. 23.

[5] HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Editora Perspectiva, 8ª edição. São Paulo : 2014, p. 33.

[6] SÉRGIO, Manuel. A Prática e a Educação Física. Editorial Compendium, 2ª. edição. Lisboa : 1982, p. 24.

[7] VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Conselho Editorial do

Senado Federal : Brasília 1999, p. 44.

[8] Em razão da pandemia provocada pela COVID-19, a MPV 984/2020 autorizou a celebração de contratos desportivos pelo prazo mínimo de 30 dias, até dezembro de 2020, com o intuito de viabilizar a conclusão dos campeonatos estaduais.

[9] BAPTISTA, Albino Mendes. Estudos sobre o Contrato de Trabalho Desportivo. Coimbra Editora, Coimbra : 2006, p. 21.

[10] VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. Direito e Desporto. LTr, 1ª edição. São Paulo : 2018, p. 61.

[11] Art. 1, II, d da LGPD, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm#. Acesso realizado em 04.08.2020

[12] SILVA, Jerry. O Futebol e a Monotorização do Sono. O jogador e a proteção de dados pessoais. Mediapromo. Vila Nova de Gaia : 2019, p. 41.

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Crédito foto: Unsplash.

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