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Liga à brasileira de futebol

Por José Cândido Bulhões Pedreira

A polêmica Medida Provisória nº 984 mudou as regras do jogo no campo dos direitos de transmissão de eventos esportivos, transferindo-os ao mandante, que agora pode negociá-los individualmente. A mudança trouxe à tona um tema que se tornou ainda mais relevante e urgente com a pandemia: a saúde e a sobrevivência dos clubes de futebol.

A UEFA constatou que vendas individuais de direitos de arena alimentam enorme desigualdade entre concorrentes. Das ligas de renome, apenas Portugal ainda adota o modelo, com o seguinte resultado: Benfica, Porto e Sporting recebem até 15 vezes mais que os outros clubes e venceram 83 dos 85 títulos de primeira divisão já disputados.

O ranking da Deloitte dos 100 clubes mais ricos do mundo mostra que aqueles de maior torcida “dependem muito menos da receita de transmissão do que os clubes menores”, pois o grande apelo comercial dos clubes de massa já lhes dá uma significativa vantagem econômica.

A regra adotada pela MP pode levar à formação de verdadeiros oligopólios, com consequências nefastas para o futebol brasileiro. Nesse contexto, a emenda do dep. Pedro Paulo cria regras para negociação coletiva dos direitos de arena e distribuição equilibrada dos recursos, além de prever a criação da liga.

Alguns enxergam inconstitucionalidade na parte da emenda que trata da criação da liga, sob a ótica de violação à liberdade de associação. Não é o caso, pois o STF já decidiu que:

Não há direitos e garantias individuais absolutos, pois outros princípios constitucionais (como o da supremacia do interesse público) também merecem proteção;

O Estado pode intervir na economia para corrigir falhas de mercado;

O futebol é patrimônio cultural brasileiro protegido pela Constituição; e

A autonomia desportiva dos clubes e federações é relativa, e o Estado pode impor normas gerais que visem à sua boa gestão.

Isto posto, não cabe mais questionar se o Estado pode intervir, mas sim como ele deve regular esse mercado de relevante interesse público, para proteger os consumidores e promover a igualdade de concorrência.

Os EUA comprovam que não cabe a defesa do liberalismo absoluto na economia do esporte. Donos de 30% de todo o mercado esportivo global, são o país que adota o modelo esportivo mais equânime do mundo, com rígidas regras criadas para garantir o equilíbrio competitivo e econômico entre as equipes das modalidades coletivas.

Uma competição desequilibrada e previsível leva à perda de interesse do torcedor e à desvalorização do campeonato. Basta ver o que aconteceu com os Estaduais nos últimos 20 anos.

As falhas do nosso mercado são evidentes: além da questão dos direitos de arena, a submissão dos clubes à CBF desvaloriza o campeonato e gera conflitos de interesse.

A CBF tem por objeto a gestão das Seleções Brasileiras e o fomento à pratica formal do futebol. 90% de sua receita advém da exploração comercial da Seleção masculina. Ela fomenta o futebol ao financiar as atividades das séries C e D. As séries A e B, que não lhe dão receita relevante, são relegadas a segundo ou terceiro plano.

A própria CBF afirma ser hoje uma “uma grande empresa brasileira, com gestão e resultados na proporção do seu porte” – R$ 957 milhões de receita em 2019. Enquanto isso, os clubes padecem de problemas estruturais e acumulam dívidas bilionárias. Não seria hora de os clubes assumirem a gestão da empresa que construíram juntos?

A atividade econômica das séries A e B, que congrega clubes avaliados em R$ 6 bilhões e a imensa maioria dos torcedores do futebol brasileiro, exige estrutura social própria, para defesa dos seus legítimos interesses. A liga, independente e competitiva, é o meio mais eficiente de se exercer essa atividade, como comprovam inúmeros exemplos de sucesso comercial na Europa, EUA e no mundo todo.

O nome do esporte nos indica o caminho a seguir: association football. A associação entre clubes é da própria natureza não apenas do jogo, mas também da atividade. Como defender que clubes que há décadas se unem para a prática esportiva e exploração comercial de uma competição de association football, não devem se associar?

Nesse caso, alegar que a criação da liga viola o princípio da liberdade de associação é uma forma velada de se esquivar da necessária e adequada regulação do mercado pelo Estado.

Aliás, o art. 148 do estatuto social da CBF exige dos clubes a filiação às federações estaduais como condição para participar das competições nacionais – o que, convenhamos, deveria ser muito mais controverso do que a criação da liga.

O Brasil tem todos os recursos necessários para ter uma liga competitiva e pujante, como a Premier League inglesa. Em vez disso, parece seguir os passos da previsível e desvalorizada Primeira Liga portuguesa.

O Estado já tentou inúmeras medidas paliativas para resolver os problemas dos clubes, como reparcelamentos e isenções fiscais. Mas as falhas que impedem o progresso do mercado não são circunstanciais, e sim estruturais. Cabe ao Estado corrigi-las.

No mundo ideal, obviamente, os clubes cumpririam com seus deveres de importantes agentes da economia nacional e formariam a liga. Como no Brasil, infelizmente, o bom senso tem que ser imposto por lei, cumpre ao Congresso Nacional exercer seu papel e definir os parâmetros para o bom funcionamento do mercado.

Chegou a hora de os clubes assumirem a responsabilidade pela condução da sua bilionária atividade econômica para traçar os rumos do seu próprio destino.

……….

José Cândido Bulhões Pedreira é advogado. FIFA Master. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/RJ. Sócio do escritório Trengrouse, Gonçalves Advogados.

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