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Liga parte 2 – Direitos audiovisuais: centralizar, multiplicar e dividir

No último mês, um dos assuntos mais recorrentes do meio jornalístico esportivo do nosso país foi a possibilidade de criação de uma Liga, o que teria despertado o interesse de investidores estrangeiros. Uma das propostas mais destacadas foi noticiada pelo renomado jornalista André Rizek, que informou que Laliga estaria em negociação para ser uma das sócias parceiras[1].

Diante da hipótese de uma mudança considerável no sistema do futebol nacional, comecei a escrever uma série de artigos sobre elementos fundamentais para o êxito das ligas, aportando a experiência europeia no tema. No primeiro episódio, dissertei sobre o Controle Econômico de Laliga, que é referência mundial e colaborou para o sucesso da competição[2].

Ato contínuo, nessa segunda parte, dedicarei o espaço para comentar sobre a comercialização e a divisão dos direitos de transmissão e a importância para a evolução da modalidade. Nesse sentido, muito embora o título nos remeta a operações matemáticas inversas, veremos que elas são totalmente compatíveis.

Primeiramente, para uma melhor compreensão da problemática, é imprescindível discorrer sobre como é feita a comercialização e a distribuição no futebol brasileiro. Nesse contexto, a venda ocorrida no Brasil é individualizada, ou seja, cada clube negocia as suas partidas de maneira separada. Ultimamente, o ordenamento pátrio sofreu uma modificação muito importante.

A lei do Mandante (14.205/21)[3] alterou a propriedade do direito de arena contida na Lei Pelé[4], que antes pertencia aos dois clubes participantes, para determinar que tão somente a equipe local possa negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens do espetáculo desportivo. Em teoria, segundo a lei, os contratos em vigência não seriam impactados.

A ideia inicial era democratizar as transmissões de futebol, para que mais canais, plataformas e emissoras pudessem ter acesso ao conteúdo desportivo, facilitado pela a autorização de somente de uma das partes, o mandante. Por outro lado, alguns efeitos negativos já são sentidos nesse primeiro momento em algumas competições, tais como: a precarização e queda na qualidade das transmissões, a dificuldade do espectador em encontrar onde poderá assistir ou adquirir os pacotes relativos aos jogos do seu time, principalmente quando é visitante, ou até o não televisionamento de uma partida.

Traçando uma linha cronológica, até o ano de 2011, os direitos de transmissão eram tratados coletivamente por meio do Clube dos 13. Com a dissolução do grupo, protagonista da comercialização desde o ano de 1987, os direitos audiovisuais passaram a ser negociados de maneira direta e individual com cada clube. Evidentemente, o abismo financeiro entre os clubes aumentou, impulsionado pela distribuição desequilibrada, sobretudo das quotas referentes ao pay-per-view.

Antes de expor o atual momento do futebol nacional, faz se necessário observar como funciona a distribuição e a negociação nas três principais ligas do mundo. Ressalte-se que, em todas elas, a negociação dos direitos ocorre de maneira centralizada e coletiva, através da Liga. Os benefícios desse tipo de tratativa são bem claros: segurança jurídica, maior poder de barganha, maior arrecadação, criação de um produto unificado a ser vendido e explorado, facilitando a sua exportação e divulgação.

Com efeito, os times fortes se unem aos de menos apelo e, juntos, conseguem preços maiores do que poderiam ter obtido se estivessem em uma tratativa individual. A centralização das negociações garante que o adquirente possa ter acesso à totalidade do campeonato, atingir a todos os públicos, valorizando-se, então, cada partida jogada.

Essa segurança jurídica foi fundamental para a internacionalização da marca e do produto dos campeonatos, aumentando-se consideravelmente os valores das vendas ao redor do mundo, que, atualmente, ocupam um espaço considerável nos cofres das Ligas, ultrapassando inclusive o que os clubes arrecadam desses direitos em seu próprio território. A propósito, a internacionalização e a expansão da marca serão exploradas no próximo artigo dessa série.

Explicada a importância da comercialização centralizada e coletiva, retorna-se à exposição dos modelos concretos europeus. A Premier League, a maior liga do mundo, foi inovadora na venda centralizada, na internacionalização e principalmente na divisão igualitária dos recursos. A iniciativa partiu do meio privado, com os próprios clubes, que dissolveram a antiga Football League e fundaram a atual entidade organizadora. Os recursos obtidos através da negociação dos direitos audiovisuais são repartidos de modo mais justo: 50% iguais para todos os clubes da primeira divisão, 25% de acordo com a posição na tabela e 25% conforme número de partidas transmitidas. Os direitos internacionais são repartidos de maneira igual para todos.

Além dos resultados exitosos dentro de campo, que rompeu a barreira do seu território com títulos e domínio continentais, com maior equilíbrio e qualidade do espetáculo, o campeonato inglês passou a ser referência mundial também fora das quatro linhas. Presentemente, a liderança em receitas em direitos de transmissão nacionais e internacionais pertence a Premier League.

Em contrapartida, Itália e Espanha tiveram um incentivo muito forte advindo da lex publica. Nesse contexto, não podemos olvidar que o futebol possui um interesse público, uma vez que representa uma parte considerável do Produto Interno Bruto de cada país, além de empregar milhões de pessoas, logo, exerce um papel importante para a economia nacional. Na Espanha, o futebol se reflete em 1,37% do PIB[5], enquanto na Itália, o esporte, protagonizado pelo futebol, equivale a 1,7%[6].

Na Serie A, no ano de 1998[7], diante da pressão relacionada ao início das investigações do órgão antitruste para avaliar se a venda centralizada, até então o modelo adotado, violava a livre concorrência, pois poderia criar ou manter uma posição de dominante prejudicial ao mercado no setor televisivo, veio a Lei 78/1999. Esse dispositivo impôs a venda individualizada, não demorando muito para ser incorporada pela Liga Italiana em seu regulamento.

Em uma das décadas mais turbulentas do futebol italiano, devido ao escândalo de corrupção Calciopoli[8], estagnação das receitas, estádios obsoletos e cada vez menos ocupados e o aumento da diferença econômica entre os grandes e pequenos, que recebiam quotas desproporcionais, ganhou força o discurso para que a venda voltasse a ser centralizada e, dessa vez, mais equilibrada.

Por conseguinte, veio o Decreto Melandri (n°9/2008)[9], que restabeleceu a negociação coletiva e centralizada pela Liga. Os direitos audiovisuais, por força de lei, passaram a ser divididos em 40% em partes iguais, 30% baseados em rendimento desportivo e 30% em audiência. Recentemente, isso foi alterado pela Lei 205/2017[10] para 50% em partes idênticas, 30% baseados nos resultados esportivos e 20% em razão da audiência e da presença do público nos estádios.

Por fim, a Espanha foi a última a abraçar esse modelo. Os espanhóis estavam muito preocupados com o desequilíbrio do seu campeonato – protagonizado por duas equipes – , com a perda do interesse da população no esporte, o que impedia a internacionalização eficaz do seu produto. Com uma forte pressão exercida pela Liga e depois de longas negociações com a Real Federação Espanhola de Futebol, foi aprovado o Real Decreto Lei 5/2015[11].

Essa normativa impunha que 90% da arrecadação iria para a primeira divisão e 10% para a segunda. A distribuição na divisão de elite seria: 50% igual para todos, 25% divididas em resultados esportivos (35% da última temporada, 20% da penúltima e 15% cada uma das três temporadas anteriores, conforme a divisão tabelada pelo diploma legal) e, finalmente, 25% de acordo com a arrecadação de bilheteria, abono de sócios e audiência. Ademais, se os valores percebidos superassem 1,5 bilhões de euros, a diferença entre o clube que mais ganha e o que menos ganha não poderia superar 3,5 vezes.

Outrossim, exalte-se a importância do futebol e sua função social, que transcende os portões dos estádios. Nesse sentido, ambos os países que tiveram influência da normativa pública impõem nesses dispositivos obrigações de investir ou dedicar parte dos valores para incentivar o fomento do futebol amador, de base e para ajudar projetos de outras modalidades desportivas.

Durante a pandemia, o Real Decreto Lei 15/2020 alterou algumas disposições da divisão dos direitos audiovisuais, fazendo com que a Laliga fosse a principal financiadora das federações e do esporte no país, ocupando um lugar acima do Estado. Foi criado um fundo para apoio ao esporte federado, olímpico e paraolímpico, no qual Laliga passou a ter que dedicar 2,5% do valor que recebe para o desporto. Ao total, os incentivos chegarão a 200 milhões em 4 anos, o que ajudará milhares de atletas e empregados.[12]Certamente, a evolução econômica da Liga permite esse tipo de colaboração.

Na parte financeira, plano nacional, os valores arrecadados com a Premier League ainda são os maiores, porém a liga na Espanha, apesar de ter uma população muito menor, se aproxima. O contrato em vigor da Premier League, para os anos de 2019/2022 é de 1,88 bilhão de euros por temporada. Em seguida, entre os anos de 2019/2022, LaLiga recebe 1,14 bilhão de euros. A Série A recebeu 973 milhões, entre os anos de 2018/2021. [13]

Internacionalmente, segundo o estudo da KPMG[14] Football Benchmark, Laliga demonstra o seu potencial e o trabalho de internacionalização desenvolvido ao longo dos anos. O campeonato inglês faturará 2,1 bilhões de euros por ano no triênio de 2022/25, o campeonato espanhol fatura aproximadamente 1,5 bilhões por temporada entre 2019/22 e o italiano vem bem abaixo com 196 milhões por ano, entre 2021/24.

Em um estudo que comparou a entidade que mais recebe e a que menos arrecada de cada liga, o jornalista Rodrigo Capelo[15] encontrou o seguinte cenário: na liga inglesa, a diferença do primeiro para o 10º era de 1,3 vez e para o último era de 1,6 vez. Na liga italiana a diferença do primeiro era de 2,1 para o 10º colocado e de 3,3 para o último. Por fim, na liga espanhola a diferença era de 3,1 para o décimo e de 3,6 para o último. Portanto, quantias equilibradas geram um campeonato mais equilibrado e de alto nível, capaz de atrair o público, patrocinadores e até os jogadores de outros países.

Observando o exemplo de uma divisão mais igualitária, o modelo brasileiro sofreu uma considerável alteração e a partir do ano de 2019, muito em conta do medo de uma “espanholização”, posto que o Brasileirão reconhecidamente era, até então, um dos mais equilibrados do mundo, aderiu aos critérios europeus. Para televisão aberta, nos contratos vigentes, a divisão passou a ser 40% igual para todos, com 30% conforme desempenho desportivo e 30% em razão do número de partidas transmitidas. Todavia, a diferença entre o primeiro e o último persistia em 6,4.

Nessa esteira, podemos citar as luvas na assinatura e a discrepância nos valores recebidos a título de pay per view como alguns dos obstáculos ainda existentes para que se alcance uma distribuição mais igualitária. Frise-se, não se está cogitando a possibilidade de todos os clubes perceberem a mesma quantidade econômica, pois é notório que todas as equipes não geram o mesmo retorno para os adquirentes. O que se busca defender é que as quotas de televisão não devem servir para aumentar e fomentar a disparidade econômica e, automaticamente, desportiva entre os times[16].

Do mesmo modo, a negociação deve voltar a ser centralizada e coletiva. Com o avanço da tecnologia e o atraso do nosso modelo, é fundamental criar rapidamente um produto do futebol nacional, uma marca do esporte que já é brasileiro por natureza. Unificado, fácil, moderno, atraente, com a possibilidade de internacionalizar de um jeito eficiente e exprimir todo o potencial esportivo dos clubes e dos jogadores.

Conforme todo o exposto, o Brasil ainda não encontrou a sua fórmula matemática ou a sequência das operações para obter êxito. Esperamos que, com a criação de uma Liga e uma gestão conjunta profissional e de qualidade, se possa negociar de modo coletivo e centralizado, o que multiplicará as receitas e que, apesar disso, elas sejam dividas de modo equilibrado. Sendo assim, já estaremos solidificando um outro pilar importantíssimo para a estrutura de esporte que sonhamos.

Crédito imagem: Flamengo/Twitter

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Vídeo do programa Seleção Sportv – Watch | Facebook – última consulta: 15.02.2022

[2] Liga parte 1: Controle Econômico, a pedra fundamental – Lei em Campo – última consulta: 15.02.2022

[3] Lei do Mandante – L14205 (planalto.gov.br) – última consulta: 15.02.2022

[4] Lei Pelé – L9615 – Consolidada (planalto.gov.br) – última consulta: 15.02.2022

[5] El fútbol genera el 1,37 % del PIB en España – AS.com – – última consulta: 15.02.2022

[6] Lo sport è l’1,7% del Pil: l’impatto sarà enorme. Club in crisi di liquidità – La Gazzetta dello Sport– última consulta: 15.02.2022

[7] Tese – Microsoft Word – Tesi Pierluigi Diritti audiovisivi .docx (luiss.it) – última consulta: 16.02.2022

[8] Calciopoli – Wikipedia, la enciclopedia libre – última consulta: 16.02.2022

[9] Decreto Melandri – Dlgs 9/08 (camera.it) – última consulta: 16.02.2022

[10] Lei 205/2017 – Gazzetta Ufficiale – última consulta: 16.02.2022

[11] Real Decreto Lei 5.2015 – BOE.es – BOE-A-2015-4780 Real Decreto-ley 5/2015, de 30 de abril, de medidas urgentes en relación con la comercialización de los derechos de explotación de contenidos audiovisuales de las competiciones de fútbol profesional. – última consulta: 16.02.2022

[12] LaLiga ayudará al deporte español con 200 millones de euros en cuatro años (mundodeportivo.com) – última consulta: 16.02.2022

[13] Football Benchmark – Broadcasting revenue landscape – big money in the “big five” leagues – última consulta: 16.02.2022

[14] https://www.linkedin.com/posts/footballbenchmark_premierleague-broadcasting-deals-activity-6898935000679755776-ru06 – última consulta: 16.02.2022

[15] Como as maiores ligas europeias negociam direitos de transmissão e distribuem verba entre clubes? Compare com o futebol brasileiro | blog do rodrigo capelo | ge (globo.com) última consulta: 16.02.2022

[16] Novo modelo de distribuição aproxima cotas de TV aberta e fechada no futebol brasileiro em 2019. Pay-per-view desequilibra | blog do rodrigo capelo | ge (globo.com) – última consulta: 16.02.2022

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