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Linguagem do futebol ou insulto?

O Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em Portugal, debruçou-se em dado momento sobre declarações de um dirigente desportivo, na qualidade de delegado do jogo, dirigidas, no acesso aos balneários, a um funcionário da equipe visitante. Terá sido dito “vai para o c(…)”, “vai para a c(…) da tua mãe!”. O TAD considerou estarem em causa “impropérios” que “configuram ditos indecorosos”, os quais são “eticamente censuráveis” e violam “de forma ostensiva” “um dever geral de urbanidade” a que o dirigente está adstrito. A “intensidade ofensiva” dos “vernáculos” não configura, porém, uma “injúria”: face ao contexto do caso concreto, as expressões em causa mostram-se “insusceptíveis de ofenderem a sua [do funcionário visado] honra e reputação”.

Coloquemos, aqui, de lado a análise do sentido e alcance dos fundamentos e da decisão do TAD, para nos centrarmos na dimensão jurídica da questão da linguagem empregada no futebol, recuando um pouco no tempo e percebendo que expressões como as escrutinadas pelo TAD já têm precedentes muito próximos. Convém tê-lo presente. Não foi o TAD o primeiro a ter certa condescendência – a palavra é minha, e assumo-a – com expressões que, em outro contexto, mereceriam outro tipo de censura. Concorde-se ou não, o fato é que a linha decisória do TAD, ainda que não a tenha expressamente invocado, encontra jurisprudência de suporte.

Há alguns anos, tivemos um processo disciplinar arquivado pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Em causa, expressões utilizadas por um dirigente para descrever um outro, aludindo a questões de personalidade, carácter e idade deste. A Liga reconheceu existir “certa agressividade”, mas assinalou que ela tem um enquadramento próprio: o “contexto do conflito”, o que torna essa agressividade como algo de “inerente a domínios como o (…) desportivo”, ou seja, uma agressividade que “deve ser tolerada.” Lição a retirar? O desporto encerra um ambiente de conflito, gerando, intrinsecamente, uma agressividade que, nesse plano, deve merecer tolerância, designadamente no juízo jurídico que se faça do que é dito…de forma agressiva.

Ok.

Recuemos ainda mais, a 2011, ano em que se fez jurisprudência em torno de declarações que possam ser mais “grosseiras”, designadamente numa entrevista publicada na imprensa. O Tribunal da Relação do Porto enfatizou que “(…) a linguagem usada no meio futebolístico incluindo a imprensa escrita, tem especificidades próprias que até certos limites admitem algum exagero e ‘calor’ postas nas expressões empregues para qualificar as condutas dos vários intervenientes”. A “(…) linguagem usada no meio do meio do futebol” é, portanto, “(…) uma linguagem mais grosseira e forte em termos nomeadamente de adjetivação, que reflete assim a paixão que este desporto faz despertar nos homens em geral”. A linguagem agora utilizada continua a apontar para as emoções, mas já não… com alusões bélicas. Da “guerra”, da “luta” e da “disputa” passou-se para… o “calor”, a “paixão”. Lógica que, diria eu, legitima declarações que, proferidas que fossem noutro contexto, seriam ética e juridicamente valoradas de forma menos… condescendente.

Ok.

Um ano antes, em 2010, tivemos dois casos paradigmáticos.

No primeiro, estava em causa a seguinte frase de um selecionador, perante médicos, referindo-se a um terceiro [e sua mãe], também ele médico: “Por que é que estes gajos não vão, a esta hora, fazer o controlo [antidopagem] na c(…) da mãe do (…)?”. O Conselho de Disciplina da FPF conduziu-nos, tacitamente, ao tal contexto próprio do desporto-rei: “No futebol, usa-se com frequência o calão”. No fundo, diria eu, é comum o calão no futebol, logo é já algo aceite, compreendido, normal no meio em causa. Verdade seja dita que a ADoP (Autoridade Antidopagem de Portugal), analisando a “vozearia” em apreço, discordou do Conselho de Disciplina, aludiu a uma “conclusão falaciosa”, mas acabou por não insistir no tema, por ser “irrelevante para os autos”, linha de certa maneira também seguida pelo Tribunal Arbitral do Desporto de Lausana, que se limitou a qualificar os “comentários” como “inapropriados e ofensivos”.

Mas ainda em 2010 há outro aresto que interessa lembrar. Novamente acusações proferidas por um dirigente desportivo. No seu acórdão, o Tribunal da Relação de Guimarães alertou para o contexto das acusações: “Tais acusações (…) são imputadas ao (…) enquanto dirigente desportivo e não enquanto cidadão comum”, ressalvando não se estar “no domínio das relações pessoais”, “mas antes no âmbito das suas emotivas ‘lutas desportivas’”. Desporto é, pois, emoção também fora do terreno de jogo. Daí que, para aquele Tribunal, “(…) os tribunais não devam intervir por forma a coartar a vivacidade e acutilância nas ‘guerras do desporto’, mesmo quando deva considerar-se que o tipo de linguagem utilizada desmerece da elevação que deveria caracterizar esse debate (…)”.

Ou seja, uma linguagem sem elevação é como que inevitável num contexto em que o desporto envolve “lutas” e “guerras”… de palavras entre dirigentes, nessa veste, que não como “puros” cidadãos. Exato, lá estão as palavras, a liberdade de as exprimir. Considerou o mesmo tribunal que “(…) há que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica – só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação que conduza as pessoas à autocensura, o que seria particularmente perigoso para um regime democrático. Tudo se conjuga, pois, para que no domínio da ‘luta’ desportiva haja uma redução da dignidade penal e da carência da tutela penal da honra, havendo que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica, pois só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação, benéfica neste domínio. Assim, os juízos e imputações feitas, embora exageradas, não excedem o que se considera tolerável no contexto da luta e disputa desportiva, muito particularmente no futebol”. A lógica parece, portanto, diria eu, ser a seguinte: a atmosfera de intimidação não resulta de juízos exagerados que são livremente expressos pela palavra; essa atmosfera existiria, isso sim, caso quem quisesse usar palavras mais exageradas se visse obrigado a autocensurar-se. Mais a mais, a “disputa” no desporto e no futebol em geral tem limites de tolerância, mas tolera-se mais do que na maioria de outros contextos.

Ok.

São já exemplos suficientes e eloquentes.

Pessoalmente discordo dessa tendência para conceder (por vezes uma grande) permissividade a comportamentos e palavras censuráveis que têm grande impacto – o futebol, nomeadamente em Portugal, tem outro contexto, não despiciendo, que faz dele o tal desporto-rei: é seguido por muitos adeptos que leem três jornais desportivos e amplas seções de esportes em jornais generalistas, e que seguem na televisão, redes sociais e demais suportes não apenas o jogo em si, mas também o que se diz “fora das quatro linhas”. Nesse sentido, convirá que tribunais e órgãos jurisdicionais desportivos evitem passar uma mensagem – em particular para crianças e jovens – de aceitação do vernáculo, do calão, da ofensa, como algo de inerente ao futebol, seu meio e suas especificidades. Quase como que se de algo inevitável se tratasse…

Concedo – e, ainda estudante, o defendi num artigo publicado, em 1998, na Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – que há causas de exclusão da ilicitude penal nas atividades desportivas, porque, de alguma forma, o ofendido consente que, no terreno de jogo, sejam proferidas certas ofensas à sua integridade física e/ou à sua honra que fora do terreno de jogo não toleraria. Mas isso é no terreno de jogo. Fora dele, a meu ver, esse consentimento deixa de existir, para o praticante, como para os demais agentes desportivos. Por mais “calor”, “paixão”, “guerras”, “lutas” e “disputas” que se criem e rivalidades que se fomentem. Por mais milhões que estejam envolvidos.

A jurisprudência do TAD e a que a precedeu é, creio, juridicamente, defensável, porque sustentada na premissa da linguagem própria do futebol. Mas, com o devido respeito, que é muito, eu discordo dessa premissa. Porventura serei eu a estar errado no exercício de ponderação a fazer. Mas nessa ponderação, como bem refere a senhora procuradora da República Teresa Almeida em artigo sobre “crimes de difamação ou injúria em ambiente desportivo”, também julgo que as preocupações com as liberdades fundamentais “(…) não implicam que se deva descurar a necessidade da adequada tutela do (também fundamental) direito à honra e, muito menos, o reconhecimento do direito ao insulto” (sublinhado da autora).

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