Poderia ser uma história sobre um grupo mafioso, desses que a literatura ja nos apresentou em linhas memoráveis. E não deixa de ser. Nem pelo conteúdo, nem pelo talento narrativo do autor.
O jornalista Ken Bessinger é um dos craques do ofício. Dos raros que ainda entendem a importância de uma grande história, e do quanto é preciso suar para ir atrás dos fatos. Apurar, apurar de novo, perguntar, fazer a pergunta definitiva, e encontrar os personagens certos.
O livro “Cartão Vermelho: Como os EUA Revelaram o maior Escândalo Esportivo Mundial” é um presente desse americano para aqueles que se interessam realmente pelo futebol, muito além dos 90 minutos jogados. O livro acaba de chegar ao Brasil pela Globo Livros, quase dois anos depois de ser publicado nos Estados Unidos.
Com um relato preciso e detalhado, e um roteiro muito bem trabalhado, ele escancara o escândalo que derrubou alguns dos cartolas mais poderosos da história do esporte. E mostra como eles se comportavam, da maneira criminosa como agiam, na normalidade com que subornavam, e como se protegiam. Ele escreve sobre Blatter, Platini, e também reserva um espaço generoso para os brasileiros João Havelange, Marin, Del Nero, Ricardo Teixeira. Sobre esse último, disse em entrevista a Danielle Brant publicada na Folha: “Ele fazia coisas muito ruins, ele se comportava como um criminoso vulgar e ganancioso.”
Bessinger sabe como poucos. E conta tudo para todos. O escândalo colocou na cadeia nomes poderosos e que pareciam intocáveis, e mandou um recado importante para toda a elite dirigente do esporte: cuidado, vocês podem ser pegos!
E por que um americano entrou nessa história? Porque os corruptos do futebol passaram pelos Estados Unidos, e um delator de lá ajudou o FBI a desmembrar esse esquema.
Um resumo da história
Lá se vão mais de quatro anos da revelação do maior escândalo que o futebol já viu. Um tsunami investigativo e jurídico que derrubou a mais alta cúpula do futebol mundial e desencadeou uma série de mudanças no esporte. Muitas, importante frisar, ainda caminham a passos lentos.
Escândalos de corrupção normalmente ganham nomes; o maior que o futebol já viveu se chama “Fifagate”.
No dia 27 de maio de 2015, o FBI, com a chancela do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, comandou uma operação-surpresa num hotel luxuoso de Zurique, Suíça. Lá estavam os principais dirigentes da FIFA. Catorze deles foram presos, entres eles José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol.
Os dirigentes eram acusados de corrupção, por meio de fraude e lavagem de dinheiro em acordos de marketing e direitos televisivos de transmissão, passando também pela escolha das sedes da Copa do Mundo.
O suborno ultrapassou os 100 milhões de dólares, e como o dinheiro passou pelos Estados Unidos, o FBI entrou na história. A primeira medida tomada pelo órgão americano foi extraditar os detidos, os levando para os EUA.
Mas tudo começou bem antes.
As investigações começaram em 1991 e tomaram fôlego depois da escolha da Rússia e do Catar como sedes das Copas de 2018 e 2022, respectivamente.
O fato é que os Estados Unidos eram candidatos a receber a Copa de 2022. A derrota para o Catar gerou uma onda de suspeitas e indignação. Segundo relatou o jornal Telegraph, Bill Clinton, que era o presidente de honra da candidatura americana, teve um acesso de fúria com a escolha. Pessoas ouvidas pelo jornal informaram que ele chegou ao hotel onde estava hospedado muito irritado e, ao entrar no quarto, atirou um objeto contra o espelho.
As autoridades americanas se envolveram na investigação.
A FIFA sabia que estava sendo espionada. A imagem da instituição manchada. Era preciso agir. Ela criou um comitê de ética e um comitê de investigação que, segundo a entidade, “teriam toda a liberdade e independência para apurar as graves denúncias”. A ideia teve efeito contrário.
Michael Garcia, ex-promotor de Justiça de Nova York, foi o escolhido para coordenar as investigações. O relatório apontava falta de colaboração da Rússia, que teria escondido e destruído provas, além de confirmar as suspeitas sobre o Catar, com compra de votos de dirigentes. O relatório nunca foi divulgado, mesmo com pedido público de Garcia para que isso ocorresse.
Para piorar, o juiz contratado pela FIFA para analisar o caso, o alemão Joachin Eckert, absolveu Catar e Rússia de qualquer acusação. Garcia criticou publicamente a decisão e apontou erros sérios na decisão do alemão.
A FIFA abraçou o juiz, e Garcia virou inimigo. O ex-promotor saiu acusando a entidade de falta de transparência e, para piorar a vida da dela, contribuiu com as autoridades americanas com um vasto material sobre os crimes.
Corrupção é crime e traz consequências.
Os dirigentes presos na Suíça em 2015 foram sendo condenados um a um, inclusive José Maria Marin.
Depois de sete semanas de julgamento, o Tribunal Federal do Brooklin, em Nova York, condenou Marin por seis dos sete crimes pelos quais havia sido acusado. A pena foi de quatro anos de prisão e multa de cerca de 4,5 milhões de dólares. Marin se tornou o primeiro chefão do futebol brasileiro condenado por corrupção.
Punidos por lá, mas livres por aqui. Isso porque nossa legislação é falha, e nossas entidades esportivas ainda não entenderam a importância de ter mecanismos internos eficientes de controle e conduta. E, mais, corrupção privada não é tipificada no Brasil. Portanto, sem previsão legal, não existe crime.
Assustada, a FIFA foi obrigada a agir.
Cinco meses depois da prisão na Suíça, o Comitê de Ética da FIFA (que tem independência estatutária da entidade) afastou, entre outros, o então presidente Joseph Blatter. Dois meses depois, Blatter e Michel Platini, ex-presidente da UEFA, foram considerados culpados por gestão desleal e conflitos de interesse e afastados do esporte por oito anos.
Gianni Infantino assumiu a FIFA prometendo transparência e um novo modelo de gestão. Mas a prática ainda não caminha ao lado do discurso.
Em novembro de 2018, um juiz do Comitê de Ética da FIFA foi preso na Malásia acusado de usar o cargo para faturar com benefícios pessoais. O caso aconteceu poucos meses depois de o Conselho da FIFA ratificar, em julho de 2018, o novo Código de Ética. Nele a palavra “corrupção” simplesmente sumiu. Logo ela, que havia sido decisiva no combate ao maior escândalo da história do esporte.
Caminhos existem
Mesmo assim, discursos por transparência e ética têm sido mais frequentes na cúpula do futebol mundial e por aqui. Mas do que se diz para o que se faz, sempre existem muitas histórias.
Investir em planos de integridade, com conselhos independentes e órgãos fiscalizadores autônomos, seria mais do que discurso, seria uma verdadeira atitude comprometida com ética e transparência.
Existe um projeto de lei que tramita do Senado, o PL 68, que tem relatoria do professor de direito e colunista do Lei em Campo Wladimyr Camargos, que seria revolucionário para a gestão esportiva no Brasil. Entre outras coisas, ele tipifica o crime de corrupção privada no Brasil. Roubou de clube ou entidade esportiva, vai preso.
Ou seja, existem caminhos, na esfera esportiva e estatal: planos de integridade e PL 68. Com eles, ser transparente e ético deixa de ser apenas uma necessidade moral de nossos dirigentes – passa a ser também uma obrigação legal.
Afinal, a história contada por Ken Bessinger é genial, mas o esporte não precisa de novos capítulos.
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