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Luxemburgo, o mais novo lugar do conflito entre lex publica e lex sportiva

Na semana passada, o movimento do esporte,detidamente na Europa, voltou a ser questionado e colocado no centro das atenções devido a um aparente conflito entre a normativa pública e a normativa privada, aquela que rege o esporte, dotado de alta especificidade. Dessa vez, a viagem foi bem curta.

No entanto, antes de mais nada, deve-se fazer uma breve explanação acerca dos conceitos de lexpublica e lex sportiva, para uma melhor compreensão do assunto que será alvo desse artigo. A lex sportiva, até então analisada e criada em uma ideia apartada das Legislações locais, é um conjunto de regras impostas, geralmente, por órgãos não estatais, ou seja, por associações privadas, que possuem uma capacidade coercitiva maior do que a de órgãos internacionais considerados mais legítimos quando o assunto é a especificidade do esporte. Ademais, eles têm autonomia, uma espécie de soberania esportiva, para emitir normas e regras sobre a referida modalidade.

Da mesma forma, ao longo dos anos, o esporte ganhou uma magnitude econômica, social e trabalhista em que a presença do Estado se tornou necessária para regular atividades de interesse público. Então, o Estado passou a ditar regras e absorver alguns princípios inerentes ao esporte e, em alguns casos, repetindo as regras emitidas por entidades privadas, criando assim o que chamamos de lex publica, que, necessariamente, tem que estar de acordo com a norma que está no topo da hierarquia normativa, a Constituição. A combinação entre a lex sportiva e a lex publica é o que podemos conceituar como Direito Desportivo, ramo do Direito ao qual somos apaixonados.

Sem embargo, conforme já relatado, nem sempre os dois foram interpretados de maneira simultânea e duas decisões emitidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia foram preponderantes para a mudança de paradigma: Caso Bosman e o caso Meca-Medina. Iniciaremos através do caso dos dois nadadores, sancionados pela Federação Internacional de Natação pelo uso de substancias dopantes.

Nesse sentido, os atletas recorreram ao órgão europeu alegando que as regras antidopagem do regulamento infringiam à liberdade de prestação de serviços, tutelada pelo ordenamento pela legislação comunitária da União Europeia. Apesar de não ter sido exitoso, o pleito dos desportistas foi um marco para a fixação de atividade econômica do esporte e sua necessidade de estar em conformidade com as disposições sobre a livre circulação e livre concorrência do Direito Europeu.

Antes da Meca-Medina, uma regra desportiva que tivesse um efeito económico era imune a contestação pelo simples fato de ser uma regra desportiva. Depois desse caso, juntamente com o caso Bosman, em que ficou estabelecido que o esporte estaria sujeito às leis da Comunidade Europeia quando constituíssem atividade econômica, ou seja, quando houvesse remuneração do atleta, natural para o esporte considerado profissional.

Sendo assim, os regulamentos privados desportivos passaram a estar abertos ao escrutínio das autoridades da concorrência. Todavia, se as entidades desportivas puderem ilustrar que os objetivos prosseguidos pelas suas regras são legítimos e proporcionais nos seus efeitos, a decisão não deixará de produzir efeitos. Ressalte-se que uma das críticas a essa decisão foi a amplitude e a falta de definição sobre o que infringiria a normativa europeia, o que poderia abrir espaço para novos litígios na Corte Europeia.

Igualmente, o caso Bosman, anos antes do ocorrido com os nadadores também foi essencial para o esporte. antigo futebolista belga, em face do seu anterior clube, o RFC Liége, além da Federação Belga e da UEFA. Naquela época, o regulamento belga e o da UEFA consideravam estrangeiros os jogadores nascidos em outro membro da União Europeia, como também impunham uma limitação ao número de futebolistas estrangeiros.

Além disso, permitiam que houvesse o direito de retenção. Em outras palavras, obrigavam o pagamento de uma compensação financeira, por parte do novo clube, ao antigo clube, mesmo que o contrato entre este último e o atleta tivesse expirado, para que se pudesse liberar o futebolista.

O jogador, com proposta para atuar em um clube francês, que acabou não se concretizando devido ao alto e desproporcional valor fixado pela equipe belga para sua liberação, alegando violação ao artigo 48 do Tratado de Roma, que dispunha sobre a livre circulação de trabalhadores no território europeu, resolveu buscar seus direitos através da prestação jurisdicional.

Ato contínuo, depois de uma longa batalha jurídica, o caso chegou ao Tribunal Europeu, que reconheceu o direito do jogador. A decisão estabeleceu que um futebolista tem de ser encarado como um trabalhador comum, pelo que, uma vez terminado o seu contrato, cessam as suas obrigações jurídicas e deverá ficar livre para assinar por outra equipe, declarando ilegal a compensação financeira ao antigo clube, até então permitida pela normativa. Outrossim, impôs fim ao limite à inscrição de jogadores comunitários em competições realizadas dentro da União Europeia.

Essa decisão ficou marcada como a libertação dos futebolistas e teve repercussões mundiais, dando azo ao boom do mercado de jogadores. Com isso, a FIFA e UEFA uniram esforços para chegar a um acordo com as autoridades europeias sobre um sistema de transferências internacionais, que pudesse estabilizar as relações entre jogadores e clubes, especialmente sob o ponto de vista contratual e que, ao mesmo tempo, pudesse proteger os clubes formadores, celeiros de grandes desportistas.

No ano passado, outro caso relacionado ao futebol chegou ao Tribunal Europeu, também oriundo da Bélgica, o que já foi alvo de outro artigo nessa plataforma. Em suma, a principal tese jurídica foi que a normativa privada belga violaria a livre circulação de trabalhadores dentro do território europeu, pois determina que dos 25 jogadores permitidos por elenco, 8 devem vir das categorias de base e 6 deles devem estar obrigatoriamente na lista de jogadores relacionados para cada jogo.

Desse modo, o clube belga Royal Amberes FC, diante da impossibilidade de contar com o jogador israelense Lior Rafaelov devido a restrição imposta pelo regulamento, acionou o Poder Judiciário local, aduzindo que a disposição da Liga Belga o impede de contratar novos jogadores e interfere diretamente na escolha técnica para as partidas.

Ato contínuo, a arguição de que as imposições da UEFA e da Jupiler Pro League infringem a legislação europeia foi submetida pelo juiz belga para a apreciação do Tribunal Europeu, ainda sem prazo para a emissão de uma decisão definitiva. No entanto, a justificativa para tais obrigações devem ser questionadas também sob o prisma da proporcionalidade, necessidade e eficácia.

Por último, mas não menos importante, antes de adentrar o caso do artigo hoje, não podemos olvidar da Superliga, que teve um efeito imediato avassalador no esporte. Nos cingindo à alegação quanto ao ordenamento europeu, os clubes idealizadores do torneio aduziam que a proibição de criação ou a imposição de sanção aos fundadores violaria frontalmente os artigos, nos termos dos artigos 101 e 102 do Tratado de Funcionamento da União Europeia, que tratam e restrição à livre concorrência devido ao abuso do uso de posição dominante no mercado. A questão foi submetida pelo juízo espanhol para o Tribunal Europeu.

Nesse contexto, é válido mencionar que, muito embora não tenha um peso vinculante sobre a decisão do órgão judicial e não ser dotada de força de lei, o Parlamento Europeu aprovou, por sua maioria, o relatório emitido pela Comissão de Cultura e Esporte, que se posicionou, de maneira firme, contra a Superliga. Para eles, é fundamental fomentar um modelo esportivo que inclua o mérito esportivo, os princípios da solidariedade, sustentabilidade, equidade e de competições abertas para um futuro salutar do esporte. As audiências foram realizadas no mês de julho, porém a decisão ainda não tem prazo para ser publicada.

Posto isso, partimos para o caso mais recente, dentro de Luxemburgo, onde está localizado o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). O FC Swift Hesperange, clube de futebol de Luxemburgo, apresentou uma demanda na Justiça local contra a Federação de Luxemburgo (FLF) e contra a UEFA, solicitando que se seja submetido à apreciação doTJUE uma questão prejudicial em matéria de direito da concorrência.

Para tanto, alegam que o regulamento nacional transgrede diversos dispositivos da legislação europeia. Dentre eles, podemos destacar:

a) As regras da UEFA e da FLF que restringem as competições transnacionais organizadas pelos clubes, como, por exemplo, uma liga BENELUX (Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Consideramque representa uma restrição da concorrência (artigo 101) e um abuso do uso de posição dominante (artigo 102), bem como a criação de obstáculos injustificados à livre prestação de serviços (artigo 56).
b) As normas da UEFA e da FLF que estabelecem quotas para jogadores jovens revelados no país/clubes como também a nível europeu. Questiona-se a motivação dessas regras à luz dos artigos 101 e 45, sobre a livre circulação de trabalhadores, o que fora também questionado pela demanda do clube belga Royal AmberesFC.
c) As regras da FLF que proíbem os jogadores que retornem a Luxemburgo de se inscreverem em todo e qualquer potencial clube interessado, já que impõem a obrigação de retorno àquele que era o empregador antes de o trabalhador sair dopaís, se transferindo para outro Estado-Membro. Esta regra também é questionada em relação ao artigo 45.º do TFUE.
d) O Estatuto da FLF que proíbe os clubes de formarem sociedades comerciais, o que é questionado à luz do artigo 63, que garante a circulação de capitais, e também à luz do artigo 101, que proíbe a restrição de investimentos.

Desse modo, podemos observar que várias questões são muito semelhantes àquelas que estão sendo enfrentadas em demandas anteriores, como a da Superliga, por exemplo. Assim, esse litígio não deve ser analisado ao curto prazo, podendo se alastrar por alguns anos. Ao meu ver, o que difere realmente são os pontos c e d, que interferem diretamente na política de negócios, dotado de desproporcionalidade e com alto teor restritivo.

Conforme o exposto, as decisões históricas do TJUE optaram por não especificar quais pontos especificamente poderiam ser submetidos quando da existência de conflito entre as normativas. Dessa forma, a análise fica para o caso concreto, o que pode gerar um certo atraso da prestação jurisdicional e expectativa no meio do esporte, tendo em vista que o órgão europeu responsável não atua somente no ramo do desporto, pois deve resolver outros conflitos atinentes à possível violação da Legislação Europeia.

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