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Mais que um clube

Um dia, disseram que o futebol se parece com Deus porque desperta a devoção dos crentes e a desconfiança dos intelectuais¹.

A afinidade com os devotos não é difícil de explicar, já que, pelo manto sagrado, há quem, como faz aos santos, acenda vela de joelhos. Com os intelectuais, contudo, a relação é um pouco mais conturbada. Esses desconfiam dos deuses da bola porque, segundo muitos gostavam de criticar, o entretenimento era uma espécie de cortina pra baixo da qual se varriam os dissabores da vida. Uma vez no templo de grama, dizia-se, a alma do homem se amansava e, com isso, se anestesiava a consciência. Era o ópio do povo. O pão e o circo.

Não que eu lhes tire completamente a razão. É verdade que, vez ou outra, com o propósito de inserir valores alheios em nossos corações, tomaram o futebol emprestado. Talvez, roubado. Como no Mundial de Roma em 34, quando o triunfo da Azurra serviu de propaganda a Il Dulce, ou, ainda, quando a flâmula da República Espanhola franquista tremulava pelas cores do Real Madrid.

Mas é o caso de se ponderar. Tão antiga quanto a reza que empurra a bola para o fundo do gol é a lição de que o futebol não tem dono. Ou serve a todos, ou não serve a ninguém. Um espetáculo que é individual, mas é coletivo. Não por outro motivo, assim que pôde, desceu das jardineiras onde havia sido plantado² e passou a brotar no chão. Como uma espécie de erva daninha, se espalhou sem respeitar o desenho do dono do jardim. Criou as próprias raízes. Ocupou espaços. Contou estórias. Fez história.

Nesses casos, diferentemente do jogo que calava, serviu também pra unir e amplificar vozes, como um alto-falante. As causas foram várias. Das bandeiras proibidas da Catalunha e do País Basco quando jogavam o Barcelona e Athlétic de Bilbao à França de 68, quando jogadores se uniram às barricadas de estudantes e trabalhadores nas conhecidas Jornadas de Maio. Em São Paulo, o final dos anos 70 trouxe ao Corinthians uma democracia quando o país mesmo não a tinha, e, algumas décadas depois, nos Andes, uma parte interditada do Estádio Monumental, em Santiago, ainda denuncia em tinta e coro os anos em que a grama deu lugar à tortura, ali mesmo. Nas vigas de concreto de quem se recusa a esquecer o passado, pode-se ler: “nunca más”.

Se, como crentes, acreditamos no poder de mudar a trajetória da bola com a força do pensamento, os desconfiados hão de concordar que, ao dar significado às emoções de quem o celebra, o futebol ajuda a reescrever a realidade. Como contou o cronista Nelson Rodrigues, quando disse que, por causa do futebol, “descobrimos o próximo”, e as ruas se enchem de “desconhecidos íntimos”. É a lealdade humana, exercida ao ar livre.

……….
¹ GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 37.
² As expressões são de Galeano.

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