A Copa 2022 com sede no Qatar vem expondo diversos problemas pelo choque de um evento cada vez mais universal com um Estado Teocrático e Antidemocrático. Questões não apenas envolvendo direitos humanos fundamentais, mas até financeiras, segundo a insatisfação da grande indústria de cerveja em parceria com a FIFA, proibidos de vender a bebida alcoolica no país anfitrião.
As notícias revelam grandes polêmicas acerca dos primeiros jogos em que jogadores de algumas seleções foram vetados de adentrar em campo com faixas no braço da “one love”, tais como Inglaterra, Alemanha e Dinamarca.
O mal-estar se elevou quando atletas dessas seleções realizaram manifestações gestuais em campo, antes do início da partida contra a referida vedação e as leis locais do país sede que proíbem outro estado de ser da pessoa humana, que não mulher e homem.
Em seu primeiro jogo, os atletas ingleses se ajoelharam em campo, já os defensores da seleção alemã, ao posarem para foto, puseram as mãos na boca. Por outra via, a federação e a sua patrocinadora master de material esportivo estamparam no próprio uniforme uma crítica metafória às violações de direitos humanos, promovida pelo país anfitrião.
Embora o espetáculo da Copa do Mundo detenha um escopo atual econômico, financeiro, através dos jogos, a FIFA não deixa de ser uma pessoa jurídica de direito privado de cunho internacional, com raízes e diretrizes fundadas na nobre tentativa de agregação humana.
No campo do direito internacional, a despeito de alguns descaminhos obscuros da entidade quanto à questões de corrupção, a FIFA procurou representar harmonização humana e diminuição de desigualdades de todas as formas por via da força do seu esporte. São exemplos históricos a suspensão da federação sul-africana em época de apartheid e a luta pela disseminação do futebol em países periféricos, conhecidos como de terceiro mundo.
Há anos já relembrava o saudoso professor Álvaro Melo Filho, “… no plano internacional, o desporto, fiel a seus valores e sua missão humanista, é parte integrante do processo de educação permanente, além de instrumento de paz, do desenvolvimento, da solidariedade, do respeito pelos direitos humanos e do entendimento internacional”.[1]
A recomendação da FIFA, sucumbindo a pressões do Qatar, para sancionar atletas e comissões técnicas que adentrem aos campos com adereços de combate à discriminação étnica e do grupo LGBTQI+, é uma pura violação dos arts. 3, 4 do seu próprio estatuto, assim como transgressão ao art. 11/3 do regulamento da Copa do Mundo 2022, que expressam ser dever da entidade o compromisso de lutar pelos direitos humanos e contra quaisquer discriminações por via do futebol.
Ademais, quando o príncipe do Estado do Qatar declara expressamente, por diversas ações, uma adesão à organização da Copa do Mundo, um evento de cariz universal, de certa forma abdica de parcela do exercício de sua soberania estatal, que se perfaz um compromisso unilateral perante o Direito Internacional Público (jus cogens do Direito das Gentes), no sentido de aceitar, minimamente, o arcabouço de direitos humanos.
Nessa esfera, sempre foi exigência rígida da FIFA a compressão da soberania do país sede da Copa sobre certas questões comerciais, estratégicas, que muitas vezes acabam por friccionar normas públicas locais, até mesmo algumas de direitos fundamentais. Desta maneira, causa espécie toda a conivência da entidade máxima do futebol com todas as imposições do Qatar para a realização da sua principal competição internacional.
Por outro lado, o que vários países sedes do ocidente em Copas passadas, durante décadas, tiveram que “engolir a seco”, inclusive sobre parceiros comerciais da FIFA, estranhamente perderam força nesta atual Copa do Mundo.
Retornando às manifestações gestuais dos jogadores das seleções de Inglaterra e Alemanha, acrescentadas ao uniforme manifestante da Dinamarca, não houve nenhum prejuízo para a realização das partidas, sendo plenamento legítimas e harmônicas com a convencionalidade dos direitos humanos e internacionais, devendo ser respeitadas sem nenhuma repreensão pelo Estado do Qatar.
Quanto à questão de os estádios serem bens públicos ou privados, pouco importa, pois o direitos humanos (direitos fundamentais) são dotados de eficácia privada (externa), devendo-se aplicar também em espaços privados, na mesma semelhança do que decorre com o direito de greve.
Levando em consideração que, mesmo em um estádio privado, o evento realizado possui dimensão internacional aceita pelo Estado do Qatar, há mais razão acentuada para as manifestações serem consideradas lícitas, salvaguardadas por normas internacionais públicas e privadas. Clarividentemente, desde que não haja depredação de bens privados ou públicos e violação de outros direitos humanos, o que de longe é o caso das referidas manifestações. Ao contrário, conferem um mínimo de dignidade humana.
Nada obstante, mesmo que se parta da teoria relativista dos direitos humanos, afastando-se as correntes universalista e multiculturalista, o representante maior do Estado do Qatar, o prícipe, por diversos atos solenes declarou manifestação unilateral de cumprir um compromisso privado internacional, que deve seguir as diretrizes mínimas do direito internacional e dos direitos humanos durante a realização da Copa do Mundo 2022.
Conforme o presidente da federação alemã de futebol manifestou publicamente nesta passada semana, “os direitos humanos são inegociáveis!”. O próprio príncipe do Qatar revela no documentário FIFA Uncovered (tradução Esquemas da FIFA) que, “a Copa do Mundo é uma festa universal do ocidente e nós do oriente também queremos participar desta festa”.
Deseja-se participar da festa mundial, mas a controlando rigidamente e sem aceitar os diversos seres humanos que, normalmente, também participam dela, pois neste ano estão barrados no acesso de entrada por questões discriminatórias das mais diversas, a incluir a segregação de gênero.
Enfim, as recomendações da FIFA para punir disciplinarmente atletas que usem adereços protestantes ao entrarem em campo de jogo, defronta as suas próprias normas federativas e a vedação aos jogadores de portarem esses acessórios pelas autoridades públicas locais violam a sua vinculação unilateral de adesão a um evento internacional, que embora de natureza privada, carrega em si conteúdo de direitos humanos e respeito às normas internacionais públicas e privadas. Portanto, é plenamente dotado de convencionalidade as manifestações gestuais, infensas à repressões do Estado do Qatar, ainda que por seu ordenamento jurídico durante o período de Copa do Mundo 2022.
Crédito imagem: Federação Alemã de Futebol
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
[1] MELO FILHO, Álvaro. Direito desportivo no limiar do século XXI. Fortaleza: ABC Fortaleza, 2000, p. 23.