“Missão Impossível 2” (2000) é o segundo filme de uma série cinematográfica estrelada por Tom Cruise, que interpreta o agente secreto Ethan Hunt, sempre lutando contra pessoas que podem destruir a humanidade.
Nessa película, dois cientistas desenvolveram um vírus que transmite uma espécie de gripe fatal. O vírus é capturado por terroristas e a missão de Hunt é de recuperá-lo antes que seja tarde demais.
Como acontece em todos os filmes da série, o protagonista consegue salvar o mundo da ameaça do vírus, que recebeu o nome de Chimera. Na vida real, porém, seria uma quimera achar que Hunt poderia impedir a disseminação do coronavírus.
Quimera também será supor que todos os contratos que tenham sido afetados pela Covid-19 possam ser cumpridos rigorosamente da mesma forma como foram concebidos, quando sequer se sabia da existência desse vírus.
Com efeito, os ajustes que foram celebrados antes da pandemia tinham por base uma situação de fato completamente diversa da que temos hoje. É impossível exigir-se em determinados casos o cumprimento de prestações simplesmente porque “estejam previstas no contrato”.
A ideia não é nova. Lá no século XII, Giovanni d’Andréa difundira a noção de que o “contrato permanece íntegro apenas quando não modificada, em sua fase de execução, a situação de recíproco sacrifício e benefício levada em consideração pelas partes no momento de sua conclusão”.[1]
Usemos como exemplo o caso da Rede Globo, que se recusou a continuar pagando aos clubes as prestações decorrentes dos contratos de transmissão das competições. Realmente não dá para exigir que ela continue desembolsando por um serviço que não recebe, mesmo que as entidades desportivas não sejam culpadas por isso.
Esse fato deverá se reproduzir por toda a cadeia produtiva, afetando tanto aqueles que estejam acima quanto os que se encontrem abaixo. Os patrocinadores certamente irão rever suas bases comerciais com a TV, assim como os clubes terão que renegociar as despesas com seus credores.
Se as equipes forçarem a barra para receber os valores remanescentes dos contratos, poderão se dar mal. É que o art. 478 do Código Civil garante ao devedor o direito de resolução dos contratos quando o ajuste se tornar excessivamente oneroso para ele, com extrema vantagem para a outra parte, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
Mesmo que se opte por não rescindir, os contratos poderão ser revistos. Os campeonatos estaduais tinham data para terminar, com uma sequência de jogos previamente definida. Com base nessa perspectiva, a emissora resolveu investir e fazer negócios.
Ainda que os torneios recomecem, é provável que o valor de mercado dessas competições não seja o mesmo. É muito possível que as fórmulas de disputa sejam alteradas, e, ao que tudo indica, os campeonatos serão disputados simultaneamente com o Brasileirão, tornando-se menos atraentes para o público e, por via de consequência, para os patrocinadores.
Dessa forma, poderá a emissora valer-se do art. 317 do Código Civil, cujo teor é o seguinte: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
A revisão do valor das parcelas soluciona apenas uma parte do problema, havendo inúmeras questões contratuais que ficam sem respostas e precisam ser rediscutidas dadas as peculiaridades de cada caso concreto.
Isto se aplica a outros ajustes esportivos, como os contratos de patrocínio, cessão do uso de imagem, publicidade estática dos estádios, locação de espaços esportivos, etc., sendo preciso encontrar rapidamente remédios para solucionar tantas peculiaridades que a lei não consegue dar conta, a fim de que esses negócios jurídicos consigam sobreviver.
Em “Missão Impossível 2” também não havia tempo a perder. Assim que o vírus entrava no organismo, destruía rapidamente as células, e a pessoa contaminada só sobreviveria se tomasse o antídoto em no máximo 20 horas.
Infelizmente ainda não temos um medicamento que combata a Covid-19, e os remédios legais para fazer com que um contrato afetado por esse vírus continue com vida não são suficientes.
Laboratórios de todo o mundo buscam uma vacina para combater a doença, e o nosso Congresso corre com projetos de lei que instituam normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas que se desenrolem durante o período do surto.
A melhor saída continua a ser a solução negociada. A mediação e a conciliação são técnicas jurídicas eficazes que podem e devem ser empregadas para pacificar os conflitos que estão surgindo na sociedade, principalmente diante da incerteza que a pandemia trouxe para todos os setores, incluindo o ramo do Direito.
O que não é factível é continuar querendo executar os contratos nos estritos limites da literalidade de suas cláusulas, quando a base sobre a qual as partes se fundaram para celebrar os acordos perdeu completamente seu significado original.
Isto não dá para fazer.
Não há quem consiga realizar esse ofício.
Porque esta é, literalmente, uma missão impossível.
[1] Frustockl, Fernanda carvalho. Aspectos da revisão judicial dos contratos no direito civil brasileiro e alemão