O esporte está passando por uma revolução que poucos estão enxergando. Atletas venceram o déficit democrático do movimento esportivo, levantaram a bandeira da proteção de direitos humanos de maneira coletiva e estão transformando o esporte. A decisão da semana passada do Comitê Olímpico dos EUA é histórica e deve provocar mudanças de postura em efeito cascata.
Os Comitês Olímpico e Paralímpicos emitiram um comunicado na quinta (10 de dezembro) informando que não punir atletas que protestarem em defesa de justiça social e racial. A iniciativa foi tomada em conjunto com os atletas, e reforça o movimento global para que o esporte reveja regras que proíbem manifestações em defesa de direitos humanos de atletas em eventos esportivos. Além disso, foi pedido que a regra 50 da Carta Olímpica (que proíbe manifestações políticas) seja alterada.
O comunicado foi além, e pediu desculpas por erros históricos. Sarah Hirshland, CEO do Comitê, disse que foi um erro os EUA terem punido atletas como João Carlos e Tommie Smith, que se tornaram personagens importantes no combate à segregação racial no país, quando em 1968 na Olimpíada do México, no pódio, levantaram o braço com o punho cerrado num gesto simbólico de combate ao preconceito.
O comunicado é uma vitória gigante dos atletas que estão mobilizados pelo mundo, e coloca pressão no Comitê Olímpico Internacional para rever a Regra 50.
Na 9º Cúpula Olímpica, realizada na semana passada (12 de dezembro), foi discutida essa questão. O presidente da Comissão de Atletas lembrou que está sendo feita uma consulta com todos os atletas do mundo sobre como garantir que eles possam se expressar em defesa de valores olímpicos, como a proteção de direitos humanos, respeitando seus colegas.
A verdade é que a pressão dos atletas está obrigando a cúpula do esporte a agir. E isso começou depois do “Caso George Floyd”
George Floyd desencadeia onda de protestos e mudanças
Com a morte do negro George Floyd por um policial branco, uma onda de protestos contra o racismo tomou conta do planeta, e o esporte quebrou um silêncio que incomodava. Marcas, clubes, entidades esportivas e atletas se posicionaram de maneira firme contra o preconceito, entendendo o papel que têm na proteção de Direitos Humanos.
Depois do assassinato de Floyd, a FIFA orientou suas entidades filiadas a não punir atletas que se manifestarem contra o racismo, como aconteceu na Alemanha. As regras do jogo proíbem manifestações políticas em campo. Mas, nesse caso, a entidade faz uma leitura mais ampla da regra, entendendo que a proteção de Direitos Humanos vai além de qualquer bandeira ideológica.
A NFL é uma Liga independente, mas até ela se curvou pela necessidade de combater a discriminação.
“Estávamos errados ao não ouvir os jogadores mais cedo e a encorajá-los a falar e protestarem pacificamente. Nós, NFL, acreditamos no ‘Black Lives Matter’. Apoiamos os jogadores que fizerem ouvir a sua voz e tomarem atitudes”, disse Roger Goodell, chefe da NFL, em vídeo publicado nas redes sociais depois da morte de Floyd, e de manifestações de atletas da Liga.
Também na onda de protestos com a morte de Floyd, atletas da NBA fizeram uma paralisação histórica, obrigando a Liga a adotar também o combate ao racismo entre outras reivindicações sociais.
Proteger Direitos Humanos é da natureza do esporte
A importância do esporte como vetor de desenvolvimento da paz, igualdade e respeito às diferenças é reconhecida dentro do arcabouço institucional do movimento esportivo.
A própria Carta Olímpica estabelece que o objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um mundo melhor e pacífico por meio da educação dos jovens por via do desporto, praticado de acordo com o Olimpismo e os seus valores.
Veja, o Princípios Fundamentais 2 e 4 dessa Carta determina como como base do Olimpismo o respeito à dignidade humana e a não discriminação em função de raça, cor, credo, sexo.
Além disso, tratados universais como o Tratado de Roma promovem direitos iguais e repudiam qualquer tipo de discriminação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos já começa dispondo que “todos os homens devem ser iguais em dignidade e direitos”.
É como se a Regra 50 fosse “inconstitucional”. Ela não está de acordo com os princípios fundamentais do esporte. Proteger direitos humanos é da natureza do esporte, ele integra e não exclui. E precisa ser uma bandeira de quem o pratica também.
Mobilização gera mudança
É fundamental, como venho escrevendo aqui, ter uma leitura mais elástica dos ordenamentos esportivos e entender que direitos humanos não são questões políticas, e que pedidos pacíficos por igualdade não podem ser punidos.
Os fatos recentes comprovam uma realidade histórica da sociedade. Tensão gera mudança, de fora para dentro. Mobilizados, os atletas mostraram a força que muitos ainda desconhecem ter, como se viu na NBA e agora no Comitê Olímpico dos EUA.
Atletas fazem parte da cadeia associativa do esporte. E, por isso, precisam ter voz nas discussões, inclusive sobre regras. A verdade é que a Lex Sportiva (sistema em que o esporte se organiza) sofre um ‘déficit democrático’, como bem definiu o professor e colunista do Lei em Campo Wladimyr Camargos. Mas ele está sendo vencido.
E a conquista promete ser histórica.|