Na nossa coluna de 8 de novembro de 2018 antecipamos, de certa forma, os desafios de um dos projetos mais ambiciosos e até então bem-sucedidos de governança do esporte: as regras de fair play financeiro da UEFA.
Estas regras, introduzidas em setembro de 2009, visam melhorar a capacidade financeira dos clubes de futebol na Europa, aumentando transparência e elevando credibilidade deles por meio do encorajamento de operações financeiras baseadas na receita própria de cada clube. Para que haja sustentabilidade para os clubes de futebol na Europa, encorajam gastos responsáveis que tragam benefício a longo prazo para o futebol. Estas regras partem de duas premissas: (i) a obrigação dos clubes de balancear seus cofres (algo iniciado na temporada 2013/2014); e (ii) a obrigação dos clubes de honrar com seus compromissos financeiros tais como os de transferência de jogadores, pagamento de salários a todos os funcionários e colaboradores (iniciado em 2011).
O que não antecipamos (e como poderíamos?) foi a severidade da punição que a UEFA estaria determinada a instituir aos clubes que quebrassem tais regras. Assim, qual não foi a nossa surpresa (que abalou o mundo do futebol em pleno Valentine’s Day) quando Manchester City recebeu medidas disciplinares determinando que o clube seja excluído da participação nas competições da UEFA nas próximas duas temporadas (as de 2020/2021 e 2021/2022) bem como uma multa de 30 milhões de euros.
O que também não poderíamos ter antecipado foi a potencial repercussão e virada de mesa que o Manchester City pode (e aparentemente se prepara para) fazer. A guerra está apenas começando. Com a primeira batalha vencida pela UEFA, o City já se manifestou publicamente de forma indicativa dos potenciais pontos em sua tese de apelação junto ao Tribunal de Arbitragem do Esporte (TAS, ou na sigla em inglês, CAS), que são:
i. Têm evidência irrefutável que não quebraram as regras de fair play financeiro;
ii. Que os e-mails que aparentemente sugerem que o City quebrou tais regras foram obtidos ilegalmente;
iii. A punição é desproporcional ou injusta comparada com precedentes de quebra de fair play financeiro por outros clubes;
iv. O fato de que muitos outros clubes têm patrocínios de empresas que também têm conexão com os donos dos clubes; e
v. A Câmara Adjudicatória do Organismo de Controle Financeiro de Clubes da UEFA, que considerou as provas e determinou a atual punição, não é órgão independente, sendo este parte integrante da UEFA.
Segundo reportagem da BBC, a potencial virada de mesa do City pode se dar por causa da inesgotável fonte de renda por trás do clube e, principalmente, pelo provável decurso de tempo que levará para a decisão final da disputa por meios judiciais. A decisão da apelação para o TAS não será ponto final nesta pendenga. As partes ainda poderão recorrer à Corte Federal da Suíça e, como instância final, à Corte Europeia de Direitos Humanos. Esse longo caminho pode durar, segundo comparação a precedentes jurídicos, cerca de dez anos. É claro que o City, quando da juntada da apelação, fará também um pedido de efeito suspensivo até decisão pelo TAS (que provavelmente será no ano que vem, salvo se optarem por uma sessão acelerada – porém, lembre-se de que há uma outra questão que tempestivamente tem precedência: a proibição da Rússia de participar das Olimpíadas de Tóquio este ano) e, posteriormente à Corte Federal da Suíça (como o fez Caster Semenya).
Para a UEFA a situação também não é simples. A derrota desta questão depois de todo este longo processo pode abrir precedente perigoso e que poderá trazer à tona a possibilidade de reabertura de outros casos já decididos. Clubes que foram punidos por quebra de fair play financeiro poderão fazer valer de argumentos utilizados pelo City caso seja apropriado. Portanto, será que a UEFA não preferirá um acordo com o City?
Como dissemos acima, a guerra acabou de começar. Pelos próximos anos acompanharemos o desenvolvimento desta questão. Os desdobramentos desta disputa podem trazer mudanças significativas para o direito esportivo.