“Precisamos dar um basta nessas atitudes. Não podemos aceitar injúria racial no futebol. Saio frustrado e triste”, desabafou Sérgio Martinéz, presidente da Terceira Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, ao anunciar seu voto na sessão que condenou Cruzeiro e Atlético-MG, na última quinta-feira (21).
As duas equipes foram punidas com perda de mando de campo e multa de R$ 100 mil, cada uma, com base no artigo 213 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, pelas desordens ocorridas no Mineirão no último dia 10 de novembro, após jogo válido pela Série A do Campeonato Brasileiro. O Atlético-MG ainda terá que pagar mais R$ 30 mil pelo episódio de injúria racial, quando um torcedor foi flagrado ofendendo um segurança do estádio. A decisão ainda cabe recurso.
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Na sessão, o subprocurador-geral Glauber Navega reforçou e sugeriu punição exemplar aos clubes para que os torcedores saibam que prejudicam suas equipes com tais atitudes. Só em 2019, já são 42 casos de racismo no futebol brasileiro, conforme levantamento do Observatório da Discriminação Racial.
O campo é o espelho da sociedade, e negar isso “só mostra quão profundo é o problema nas pessoas”, avalia o historiador Marcel Diego Tonini. Estudos recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que o Brasil ainda está muito longe de uma democracia racial. Os brancos têm maiores salários, sofrem menos com desemprego e são maioria entre os que frequentam o ensino superior. Tal realidade é herança do longo período de colonização europeia e escravidão. Os negros vivam em condições desumanas e, pós-abolição, ficaram à própria sorte. Foi assim que o racismo estrutural acabou sendo implementado e, por isso, ainda é muito difícil para a população negra ascender economicamente no Brasil.
A ausência de representatividade na sociedade e no futebol, em especial, foi destacada em entrevista coletiva pelo técnico Roger Machado. “Chama a atenção que temos mais de 50% da população negra, e a proporcionalidade não se representa. A gente tem que refletir e se questionar. Porque a população carcerária, 70% dela é negra, porque quem mais morre é o negro no Brasil? Quantas mulheres negras tem comentando esporte?”.
Roger comanda o Bahia, time que vem ganhando destaque por ações em favor das minorias e contra qualquer tipo de preconceito. “O ‘novembro negro’ do ano passado foi um divisor de águas para as campanhas do Bahia. A gente ganhou um novo patamar de reconhecimento e visibilidade”, afirma Nelson Barros Neto, coordenador do Núcleo de Ações Afirmativas do clube. Em 2018, a equipe jogou todas as partidas do Campeonato Brasileiro em casa com nomes de negros históricos, negros da atualidade e atletas negros da história do Bahia nas camisas.
Em 2019, o Bahia lançou a ação #DedoNaFerida que trata exatamente do racismo estrutural. “O racismo está em toda parte e no Bahia também. A gente está fazendo uma ‘mea culpa’. No Bahia não tem diretor, nem gerente negro. Tem menos de 25% do Conselho Deliberativo negro, e numa cidade como Salvador, tão negra. A gente fez esse reconhecimento. E, para tentar melhorar de alguma forma, iniciamos uma série de oficinas sobre racismo estrutural. Três turmas já foram formadas no Fazendão, nosso Centro de Treinamento, com funcionários do clube. Vamos ofertar as oficinas para imprensa, torcedores e mais 50 empresas que se interessarem”, informa Nelson.
Além do Bahia, Grêmio, Internacional, Juventude e Santos já fizeram parceria com o Observatório da Discriminação Racial doando camisetas utilizadas em campo com o patch da entidade. O valor da venda dessas camisas ajudou na elaboração e impressão de uma cartilha. “O material faz parte do nosso sonho de utilizar o futebol para dialogarmos com a sociedade sobre o racismo”, declarou Marcelo Carvalho, diretor do ODRF. “Estou negociando a possibilidade de lançamento em parceria com algum clube que implemente o projeto em suas categorias de base”, acrescenta.
A cartilha não será distribuída. O objetivo é falar diretamente com crianças e adolescentes e criar uma política de valorização e afirmação do negro. “Temos outros negros com capacidade para trabalhar no futebol. Mas, muitas vezes, o que falta é oportunidade. Estou aqui porque eu me preparei e quero contribuir para que mais profissionais capacitados recebam essa chance de mostrar seu potencial”, defende Marcão, técnico do Fluminense, que ao lado de Roger Machado, são os únicos negros no comando de equipes da Série A do Campeonato Brasileiro
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