O termo multi-club ownership (MCO) é cada vez mais escutado por todos os operadores de direito e profissionais que atuam com o futebol. Atualmente, devido ao advento da Lei 14.193/21, a Lei das SAF, ela adentrou definitivamente o território brasileiro. Essas palavras, em inglês, referem-se à aquisição ou controle de dois ou mais clubes por uma mesma pessoa, seja ela jurídica ou física, diretamente ou indiretamente por meio de um intermediário. Comumente, chamado aqui no Brasil de conglomerado de clubes.
Nesse sentido, é importante mencionar que Cruzeiro e Botafogo já pertencem a esse rol, que, em breve, promete ganhar a companhia do Vasco da Gama, em tratativas finais com o grupo americano Partners 777, detentor de ações minoritárias do Sevilla e controlador do Genoa, da Itália.
Com efeito, entre os mais diversos motivos para essa nova modalidade de investimento foi que, para os investidores, o futebol é uma possibilidade bem plausível de diversificar o portifólio de negócios, expandir a marca, ganhar exposição global, otimizar as operações da empresa, ampliar seu poder e influência sobre a sociedade, devido ao grande interesse social inerente ao esporte mais popular do mundo, e, para alguns, melhorar a imagem da marca ou até mesmo da própria pessoa física.
Ademais, inevitavelmente, com uma carteira de clubes, se pode barganhar e obter receitas mais vantajosas de patrocínio, de parceiros, nitidamente mais elevadas do que se somente uma equipe negociasse. Funciona como estratégia negocial. Em contrapartida, a empresa patrocinadora/parceira pode ganhar acesso a mercados em diversos continentes, agregando valor a sua marca por meio do esporte.
Com uma mentalidade totalmente empresarial, os investidores começaram a adquirir novos clubes, também em países emergentes e mercados não tão tradicionais, que pudessem proporcionar benefícios fiscais e burocráticos, um público consumidor a ser aproveitado e, obviamente, fontes de talentos esportivos capazes de garantir maiores lucros com negociações de direitos econômicos, por exemplo.
Ressalte-se que, para o êxito desse modelo, é fundamental estabelecer um projeto esportivo sólido, com um sistema bem definido. Podemos citar dois modelos predominantes no futebol mundial: o piramidal, com clubes de vários níveis, que inclui um principal, no topo da cadeia, que é a prioridade esportiva do grupo e é “alimentado” pelo restante ou, por outro lado, um sistema horizontal, com times do mesmo nível e relevância, que possuem os mesmos objetivos esportivos. Da mesma forma, deve-se avaliar, com precisão, o mercado, a história do clube, a Liga e, principalmente, alinhar-se com a expectativa do torcedor, o principal patrimônio e consumidor do produto.
Isso posto, passamos a discorrer sobre a evolução desse formato de negócios ao longo da história. Esta prática já existia desde a década de 90, com a empresa ENIC, que, muito embora não estivesse diretamente envolvida no desporto, adquiriu porcentagens significativas em ações de vários clubes, com o único intuito de valorizar as quotas e revende-las posteriormente, mas sem interferir nos assuntos desportivos, inerentes à administração dos clubes. Esta empresa obteve ações do Tottenham, Basel, Rangers, AEK Athens, SK Slavia Praga, etc. e continua a ser a acionista majoritário do clube inglês.[1]
No entanto, para uma melhor compreensão do crescimento recente dessa figura jurídica, é necessário voltar ao ano de 2015, para a introdução do artigo 18ter ao Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[2], que proibiu a propriedade/aquisição de direitos econômicos dos jogadores por terceiros, conceito em que se enquadram os grandes empresários e os fundos de investimento.
A FIFA acreditava que essa medida permitiria que os terceiros passassem a investir mais nos clubes, revestidos de uma estrutura societária favorável, o que, segundo a entidade, aumentaria a transparência e manteria a integridade do esporte, uma vez que reduziria a influência de terceiros e o conflito de interesses, evitando-se, assim, uma possível manipulação de resultados.
Uma parte da previsão se mostrou acertada e os terceiros passaram a investir diretamente na aquisição de clubes, expandindo-se e criando um negócio muito promissor. Entre 2016 e 2021, nas 15 principais ligas do continente europeu, o número saiu de 20 para 40 clubes.[3] Recentemente, em um novo levantamento, concluiu-se que 156 equipes ao redor do mundo fazem parte de 60 conglomerados de clubes[4].
Ocorre que, entretanto, a questão sobre o conflito de interesses e a preocupação com a integridade do esporte não pareceram ser totalmente dirimidas. Desse modo, podemos citar um caso emblemático, envolvendo um conglomerado de clubes, que aconteceu no ano de 2017, quando Red Bull Leipzig e o Salzburg se classificaram para a mesma competição europeia.
Nesse contexto, o regulamento da UEFA Champions League é bastante claro, no seu artigo 5.º, com o intuito de evitar conflitos de interesse e manter a integridade do esporte, quando estabelece a impossibilidade de uma pessoa, física ou jurídica, exercer o controle ou influência sobre mais do que um clube que participe de uma mesma competição continental.
Em outras palavras, podemos definir esse controle como: i) possuir a maioria dos direitos de voto dos acionistas; ii) ter o direito de nomear ou destituir a maioria dos membros do órgão administrativo, de gestão ou de controle do clube; iii) ser acionista e controlar sozinho a maioria dos direitos de voto dos acionistas em virtude de acordo celebrado com os demais; ou, por último, iv) poder exercer influência decisiva no processo decisório do clube por qualquer meio.
Além disso, atualmente, há outras proibições, tais como: a de possuir ou negociar títulos/ações de qualquer outro clube que participe da mesma competição, ser membro de qualquer outro clube que participe de uma competição de clubes continental, estar envolvido em qualquer cargo na gestão, administração e/ou desempenho desportivo de qualquer outro clube que participe da mesma competição de clubes e, por fim, ter qualquer poder na gestão, administração e/ou desempenho desportivo de qualquer outro clube que participe de uma competição europeia.
Resumidamente, ninguém pode estar envolvido simultaneamente, direta ou indiretamente, a qualquer título, na gestão, administração e/ou desempenho esportivo de mais de um clube participante de uma competição de clubes da UEFA. Por seu turno, especificamente no caso Red Bull, após uma profunda investigação, o órgão de controle da UEFA permitiu a participação de ambos os clubes, uma vez que, segundo o órgão, a empresa RedBull era apenas uma patrocinadora do RedBull Salzburg, sem ter uma percentagem da participação e sem exercer qualquer controle sobre as operações do referido time.
Nesse ano, a polêmica voltou à tona devido a aquisição do Milan pelo fundo de investimento RedBird Capital Partners, que é acionista minoritário na gestão da Fenway Sport Group, proprietária do Liverpool, e do FC Toulouse, onde comprou 85% das ações, em 2020, após a promoção para a Ligue 1. A UEFA deve ser provocada para decidir sobre o assunto, afinal, há controle e influência do RedBird no Liverpool, através de uma participação minoritária, no mesmo peso com a que ocorrerá no Milan?
A propósito, a Itália[5] tem sido um dos países com as maiores discussões sobre o assunto, inclusive internamente, afetando diretamente os empresários locais. O caso mais notável foi a propriedade de Claudio Lotito de duas equipes, da Serie A, a Lazio e, da segunda divisão, a Salernitana. Em agosto do ano passado, quando esta última foi promovida à primeira divisão, a Federação Italiana de Futebol (FIGC) obrigou o presidente Lotito a vender a sua participação na Salernitana, para garantir a integridade e a lisura da competição.
No mês seguinte, em um movimento inesperado, a FIGC[6], com a votação massiva do Conselho, editou uma regra para proibir o conglomerado de clubes no futebol profissional italiano, evitando-se casos semelhantes no futuro, como de Lotito e De Laurentis (proprietário do Napoli e Bari). Essa norma entrará em vigor somente a partir da temporada 2024/25.
A insuficiência dos regulamentos, a falta de definição precisa sobre o que seriam os conglomerados de clubes e o que seria permitido para esse grupo de equipes são, sem dúvidas, algumas das necessidades e desafios mais marcantes do setor jurídico desportivo para os próximos anos. No atual momento, ser um multi-club ownership apresenta suas vantagens, inclusive quando nos remetemos à capacidade de burlar regulamentos em vigor.
Nessa esteira, em um artigo recém divulgado[7], Eduardo Coutinho, uma das referências na área do desporto, apontou diversos conflitos existentes entre o conglomerado de clubes e algumas normas do RSTJ, que podem trazer benefícios imediatos para eles em detrimento dos que adotam o modelo comum.
Em primeiro lugar, há a possibilidade de burla ao “transfer ban”, a temida sanção com a proibição de registrar jogadores, que ocorre geralmente quando do descumprimento de uma decisão da FIFA ou inadimplemento contumaz das obrigações financeiras. Sendo assim, enquanto durasse a punição, outro clube pertencente ao conglomerado, no caso da existência de uma possibilidade positiva no mercado, pode contratar um jogador, garantindo uma reserva de mercado e, findo a sanção, repassar o atleta ao clube punido.
Nesse exemplo, não haveria qualquer transgressão às normas sobre transferência ponte, presentes no artigo 5 do RSTJ, pois ultrapassaria o período mínimo de atuação, como também não estaria infringindo nenhuma outra regra do dispositivo. Contudo, o espírito da punição estaria sendo violado, posto que, indiretamente, o proprietário e o próprio clube, responsáveis diretos pelo descumprimento ou inadimplemento, estariam se valendo de outro clube para reservar um jogador com potencial de mercado, destinado ao time infrator.
Da mesma forma, conforme já demonstrado aqui nessa seção em outra oportunidade[8], o conglomerado de clubes se valia dessa estrutura para utilizar, de forma abusiva e excessiva, as cessões temporárias (empréstimos) dos futebolistas, construindo uma reserva de mercado. Tudo isso, levou a implementação de novas normas pela FIFA para o instituto.
Entre as principais mudanças, excluindo os jogadores com menos 21 anos ou atletas formados nas categorias de base, podemos destacar: os empréstimos serão limitados em contratos de até um ano, nenhum clube poderá ter mais do que três jogadores emprestados para/de um mesmo clube, estará proibido o sub-empréstimo (clube não pode receber um jogador emprestado e repassá-lo para outro). Outrossim, haverá uma limitação gradativa do número total de atletas emprestados para/de um mesmo clube, atingindo o número limite de 6 a partir da temporada 2024/25.
Os conglomerados de clubes nitidamente teriam caminhos para burlar essas regras, posto que a maioria, além de possuir o mesmo proprietário ou acionista, tem em comum, os objetivos esportivos, bem como compartilham estruturas de treinamento, tecnologia e desenvolvimento de jovens. Com isso, é muito possível simular um empréstimo em forma de transferência definitiva, tamanha a integração entre as equipes do mesmo conglomerado, posto que o clube vendedor pode ter a garantia de que, se for do interesse do grupo, o adquirente lhe devolverá o jogador após o período fixado.
Na prática, não há qualquer infração às normas recém aplicadas, pois os clubes são livres para pactuar o valor da multa rescisória, podendo permitir a transferência dos direitos econômicos em um valor até abaixo do estipulado contratualmente. É a liberdade do mercado, na sua essência, atuando nas negociações dos jogadores.
Todavia, a falta de regulamentação pode deixar uma lacuna que impossibilite o real cumprimento do escopo da limitação dos empréstimos entre os clubes do mesmo grupo, mantendo-se os mesmos problemas que deram azo a nova normativa, como a tentativa de impedir a reserva de mercado de jogadores e garantir que os empréstimos tivessem uma finalidade desportiva, válida para o desenvolvimento dos jovens, principais afetados pelo abuso desse tipo de cessão.
Conforme o exposto, os multi-club ownership devem ser regulados, rapidamente, de maneira precisa, após uma avaliação profunda do mercado e audiência de todas as partes do esporte, sob o risco de os próprios regulamentos das entidades que comandam o esporte ficarem sem efeito prático.
A manutenção da integridade e a exclusão do conflito de interesses não se restringem somente em coibir a manipulação de resultados, como também a de assegurar, aos olhos dos torcedores, que não haverá conflito esportivo, econômico e administrativo, e que as regras serão cumpridas por todos, sem exceção.
Por outro lado, há que se ter a consciência de que o tema não é fácil, pois interfere diretamente na ordem econômica e na liberdade de mercado, o que é assegurado diretamente pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Qualquer alteração deve estar em conformidade com a legislação europeia.
Esperaremos os próximos passos e a tendência é que o Brasil esteja cada vez mais presente no sistema dos conglomerados de clubes. Um território ainda sem lei e em exponencial crescimento. Quem controla multi-club ownership?
Crédito imagem: Stock
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[1] Multi-club Ownerships: The Future of Football? • Outside of the Boot – última consulta: 08.06.2022
[2]RSTJ FIFA – FIFA-Legal-Handbook-ES.pdf – – última consulta: 08.06.2022
[3] A nova ordem dos Multiclubes (globo.com) – última consulta: 08.06.2022
[4] Play the Game – Multi-club ownership in football challenges governance at many levels – última consulta: 08.06.2022
[5] How The Ban Of Multi-Club Ownership Could Impact Foreign Investments And Change The Future Of Italian Soccer (forbes.com) – última consulta: 08.06.2022
[6] Ufficiale, stop alle multiproprietà: nessuno potrà avere due club dal 2024 (corrieredellosport.it) – última consulta: 08.06.2022
[7] Globalised Football: are we at a time to think about FIFA Multi-Club Ownership organization regulation? | LinkedIn – última consulta: 08.06.2022
[8] TMS 10 anos parte 1: O abuso do uso das transferências temporárias pelos clubes – Lei em Campo – última consulta: 08.06.2022