Acompanho o futebol há mais de quarenta anos. Trabalho perto dele há quase trinta. Mesmo assim, ele não perde a capacidade de me encantar e surpreender. A Copa do Mundo Feminina talvez seja a mais grata surpresa dos últimos tempo. Recordes de público, discussão nas ruas e nas redes. Investimento. Nessa hora, é fundamental lembrar e celebrar a história.
Tenho nas prateleiras de casa um livro que mostra mais algumas personagens indispensáveis na luta das mulheres pelo direito de jogar futebol.
Estou falando de “Evas do Gramado”, de Auriel de Almeida. Um registro cheio de detalhes sobre como o Primavera Atlântico Clube foi perseguido pelo Governo Vargas até ter que fechar.
O livro reconta a trajetória deste clube em formato de romance histórico. Mostra o surgimento, apogeu e o cruel fim de uma equipe que encantou o público e terminou perseguida pela polícia.
De maneira leve, sem perder a profundidade necessária, a obra nos traz mais um retrato fundamental sobre as dificuldades que o futebol feminino passou para chegar até aqui.
As Evas do Gramado
O Primavera Atlântico Clube nasceu no Rio de Janeiro pela vontade das mulheres de se reunirem para jogar futebol. Com talento, foram ganhando a simpatia dos torcedores e espaço para fazer preliminares de jogos importantes.
No início dos anos 40, o esporte dava mostras de força econômica, crescia em interesse e organização.
E, dentro dessa realidade, uma personagem se tornava fundamental: Carlota Alves Resende, a Dona Carlota. Ela ajudou a montar dezenas de clubes femininos no Rio de Janeiro.
Com resultados expressivos, o Primavera se destacou e foi convidado para excursionar até a Argentina para representar o Brasil em partidas amistosas.
Mas essa realidade começou a incomodar. Além de superar adversárias, era preciso driblar o preconceito.
“Torçam, garotas. Mas não joguem nunca.”
“Futebol não é esporte que seja praticado por mulher.”
“Pé de mulher não foi feito para meter chuteiras.”
“O futebol mata a graça da mulher.”
Essas, algumas das manchetes que estampavam jornais daquele período.
Se o futebol à época era usado como identidade nacional, a participação feminina precisaria ser comedida. As mulheres eram vistas como guardiãs da família e sua educação deveria ser para priorizar o lar e afazeres domésticos.
O Primavera não resistiu. Fundado em 4 de maio de 1940, pendurou as chuteiras menos de um ano depois.
Vítima do preconceito e da perseguição do Governo Vargas.
Em janeiro de 1941, Dona Carlota foi presa sob acusação de lenocídio (exploração sexual).
A frágil acusação vinha reforçada com o argumento de que atletas de destaque do Primavera como Sally e Aida trabalhavam também como dançarinas na boate El Dorado. Isso sempre foi lembrado nas peças acusatórias do processo.
No fim das contas, o processo não teve prosseguimento, mas atingiu seu objetivo principal. Ele freou o desenvolvimento do futebol feminino, acabou com o Primavera e criou o clima para o Estado dar o golpe final.
Em 1941 mulheres foram proibidas por lei de jogar futebol
A prática do futebol feminino é muito antiga no Brasil. Vem do início do século passado. Nas praias, nas ruas, em campos de várzea, mulheres também corriam atrás da bola pelo prazer do jogo.
Mas a popularidade do esporte entre as mulheres incomodou o Estado Novo de Getúlio Vargas. O Decreto-lei 3.199, de 1941, criou o Conselho Nacional de Desportes, e nele estava o art. 54:
“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”.
E, piorou. Em 1965 o regime militar tornou a proibição expressa no CND, por meio da deliberação número 7:
“Não é permitida a prática feminina de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo, halterofilismo e beisebol”. As mulheres no futebol estavam ainda mais relegadas à ilegalidade
Mesmo com a proibição, as mulheres seguiam jogando bola em jogos clandestinos.
Com o enfraquecimento da ditadura, o aumento das liberdades individuais, vários times começaram a surgir.
Em 1979, já na abertura, a deliberação número 7 foi revogada e surgiram as primeiras ligas não clandestinas de futebol feminino. Mesmo assim, após mais de 40 anos, a futebol feminino avançou, mas a realidade ainda é muito difícil.
E agora?
Em 2016 o futebol feminino teve uma virada.
A FIFA colocou a modalidade em destaque, estipulando como meta ter ter 60 milhões de mulheres praticando o esporte até 2026. Seguindo o caminho do topo da pirâmide, Conmebol e a CBF seguiram na onda e criaram regras que obrigam grandes clubes a investir em times
Mesmo assim, muita coisa ainda precisa mudar.
Segundo reportagem do UOL no fim de 2019, a média salarial é de cerca de 1.500 reais. Mas o problema maior é que nem sequer o pagamento é feito de maneira correta, e as atletas, a maioria, nem sequer têm carteira assinada, como manda a lei.
Com a determinação da FIFA, as regras criadas pela Conmebol e CBF e o apoio de mídias importantes de conteúdo esportivo, o interesse aumenta. O esporte cresce também como negócio.
O exemplo de que ele deixou de ser projeto e se tornou realidade está escancarado no nosso dia a dia nesse Mundial.
A tendência é que o mercado se profissionalize, pague mais e pague corretamente. A vigilância será muito maior. Assim precisa ser.
A história mostra que esse é um caminho possível, principalmente quando se trata de gente talentosa, que já driblou preconceitos e leis.
E nesse momento de avanço, é sempre importante lembrar de todos que ajudaram nesse processo, como Carlota, Sally e Aída, do Primavera Atlântico Clube. E do livro de Auriel.
Crédito imagem: Getty Images
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