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Na dividida entre Kant e Hegel, quem apita é Habermas

Temos conversado por aqui acerca do caráter autônomo do sistema transnacional do esporte, que foi batizado por “Lex Sportiva” (não confundir com “lei esportiva”, estamos falando de todo o sistema, não apenas o jurídico, e, apesar disso, o nome é “lex” mesmo). Pois bem, esse sistema, naturalmente, entra em choque diariamente com outros, e as consequências são um repertório enorme para a pesquisa na área da Sociologia do Esporte e, claro, também no Direito Esportivo.

Um exemplo de que todos se recordam é o notório Caso Bosman. Se você ainda não conhece bem a história desse heroico jogador belga, recomendo a leitura do ótimo texto de Andrei Kampff aqui no Lei em Campo. Trata-se de um caso interessantíssimo a todos os pesquisadores do fenômeno do Direito Transnacional. De uma só vez, um fato ocorrido no âmbito da Lex Sportiva passou a acionar não só a jurisdição interna da Bélgica, como ainda o especialíssimo Direito Comunitário europeu. Quem decidiu finalmente e a favor do jogador de futebol, fulminando o instituto do passe, foi o Tribunal de Justiça da Europa, um dos órgãos principais da União Europeia.

Intervenção do Direito Europeu contra a autonomia da Lex Sportiva? Não é bem assim, mas continuemos com outro caso para complexificar ainda mais.

No meu livro “Constituição e Esporte no Brasil” conto a história de outro atleta que gerou um problema importante para a Lex Sportiva:

“…o processo que foi julgado pelo TAS em 2010 referente à condenação do atleta Alejandro Valverde por dopagem no âmbito da União Ciclística Internacional — UCI. Ocorre que o órgão de controle de doping interno do país de Valverde, Espanha, considerou, a condenação da UCI não poderia ser aplicada por insuficiência de provas e prevalência do princípio do in dubio pro reo, previsto no sistema constitucional estatal espanhol. A intervenção do TAS se deu por provocação da UCI, que buscava a supremacia do direito transnacional esportivo para a resolução do caso, com a manutenção da sanção imposta contra o atleta. O TAS, por meio da sentença arbitral CAS 2009/A/1879 —Alejandro Valverde Belmonte v. ‘Comitato Olimpico Nazionale Italiano’, confirmou a condenação do ciclista por doping, argumentando que o princípio da territorialidade dos atos nacionais previne que haja geração de efeitos da decisão além do território nacional.”¹

Resumidamente, a Corte Arbitral do Esporte (CAS), instância processual máxima da Lex Sportiva, desconsiderou a decisão do tribunal estatal espanhol e impôs ao ciclista a continuidade da sanção do sistema transnacional do esporte.

No primeiro caso, Bosman, o sistema UEFA/FIFA aceitou a decisão estatal/comunitária e mudou seu procedimento interno (na esfera da Lex Sportiva) para casos análogos. Caíram tanto o limite a jogadores europeus não nacionais do time para as competições, como o direito do clube sobre o passe do atleta. O sistema absorveu a decisão europeia e a transformou em linguagem jurídica interna, como se já fosse própria sua.

Já no Caso Valverde, o limite da convivência entre os sistemas chegou a um esgarçamento. Imagine a seguinte situação: o cliclista estaria “liberado” pelo Estado espanhol para competir em seu território, mas a UCI não reconheceria seus resultados nem na Espanha nem em qualquer outra parte do mundo.

Não sei se ficou claro, mas os dois casos trazem em seus cernes a proteção aos Direitos Humanos. A dignidade e liberdade de trabalho de um jogador de futebol e a presunção de inocência de um ciclista condenado, segundo o tribunal da Espanha, sem base em provas.
Se Hegel entendia que não haveria liberdade fora do Estado e Kant dizia que qualquer liberdade adviria da supremacia de direitos do indivíduo, como resolver tão graves dilemas? Como colocar por terra a autonomia das entidades esportivas em um julgamento do tribunal da União Europeia ou entender que o princípio da especificidade esportiva se sobrepõe ao direito de um atleta ao devido processo legal? Kant ou Hegel?

Veja, eu entendo, como já escrevi nesse meu último livro¹, que:

“A passagem do racionalismo para a situação atual de alta complexidade social retira o sentido de uma autonomia dividida entre uma vertente subjetiva —vista simplesmente como condição de se portar audeterminadamente —e de autonomia exterior — no sentido de se proteger contra a tirania, para uma dimensão de equiprimordialidade entre a autonomia privada e pública.”

Explico melhor, mas agora recorrendo diretamente ao filósofo alemão, nosso contemporâneo, J. Habermas. Para ele:

“O sistema dos direitos não pode ser reduzido a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania do povo, porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política”.

Esse membro tardio da Escola de Frankfurt, expoente já de transição da Teoria Crítica, entende, como lemos acima, que não há mais possibilidade de defesa para a ideia moderna de uma heteronomia contingenciadora da autonomia, por ele vista de modo indivisível, já que a equiprimordialidade impede a supremacia da face externa à interna.

Por isso, nem Kant, nem Hegel. Habermas, mesmo que partindo do que eles deixaram de legado, avança para a hipótese de uma única decisão correta em hipóteses de conflitos intersistêmicos: a prevalência da defesa dos Direitos Humanos. Inclusive nos nossos casos do Direito Esportivo que citei neste artigo.

……….
¹ CAMARGOS, Wladimyr. Constituição e Esporte no Brasil. 1. ed. Goiânia: Kelps, 2017. v. 1. 199p.

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