A relação entre a Mercedes-Benz e a Fórmula 1 não é de hoje. Na década de 1950, a montadora foi responsável pelos carros que propiciaram ao lendário Juan Manuel Fangio dois dos seus cinco títulos mundiais. Na década de 1990, a empresa estabeleceu uma longa e bem sucedida parceria com a Mclaren que também rendeu títulos mundiais. Por fim, desde 2010 a Mercedes voltou a ter uma equipe própria e enfileirou seis títulos mundiais de pilotos e construtores de 2014 a 2019, liderando com alguma folga a tabela do campeonato de 2020 – no que, para muitos especialistas, é o período de maior domínio de uma equipe em toda a história da Fórmula 1.
Apesar das muitas diferenças, essas três fases tiveram em comum uma cor marcante: o prateado que, desde os primórdios da história da Mercedes no automobilismo, sempre rendeu a seus carros o apelido de “flechas de prata” (inclusive no período de associação com a Mclaren). Curiosamente, em 2020 não temos nenhuma “flecha de prata” nas pistas, mas referências a duas outras cores quando se menciona o nome da Mercedes. De um lado, a Mercedes preta; de outro, a Mercedes rosa.
A Mercedes preta
O preto da Mercedes 2020 surgiu a partir de uma importante e pertinente provocação de Lewis Hamilton, atual piloto da equipe e que caminha a passos largos para se tornar o maior de todos os tempos em termos estatísticos. Ainda neste ano, ele poderá se tornar heptacampeão mundial, igualando o recorde de Michael Schumacher, além de estabelecer o recorde de vitórias (também pertencente ao alemão). Essas marcas tornam-se ainda mais representativas na medida em que Hamilton é o único piloto negro a ter disputado corridas de Fórmula 1 durante os 70 anos de história da competição – e apenas o segundo a sequer testar um carro da categoria.
Este fato, por si só, é mais do que suficiente para evidenciar a falta de diversidade étnico-racial na Fórmula 1, mas não o único. Basta assistir às corridas pela televisão para constatar que, também nos boxes, praticamente não se veem negros. Justamente por isso, em meio aos movimentos antirracismo que se espalharam por todo o mundo nos últimos meses, Hamilton, além de apoiar veementemente tais movimentos, protestou publicamente contra a falta de diversidade na categoria. Mais do que isso, anunciou a criação de uma comissão com objetivo de combater o racismo e promover a diversidade no automobilismo.
Felizmente, a mobilização encontrou eco na Fórmula 1. A categoria lançou uma campanha para promover a diversidade, outros pilotos manifestaram-se no mesmo sentido, algumas equipes inseriram o arco-íris (também utilizado na marca da campanha promovida pela Fórmula 1) na pintura de seus carros, e a Mercedes transformou suas flechas de prata em flechas negras, em apoio à iniciativa de seu piloto.
Ao comunicar a mudança na cor dos carros (e também dos macacões dos pilotos) para a temporada 2020, a equipe expôs que a iniciativa refletia seu compromisso com a ampliação da diversidade na própria equipe e no automobilismo como um todo. E revelou números incríveis: apenas 3% de seus funcionários pertencem a grupos étnicos de minoria, e tão somente 12% são mulheres. Embora os dados refiram-se exclusivamente à Mercedes, é bastante provável que se trate de retrato fiel da realidade de toda a Fórmula 1.
Por isso, fica muito clara a importância dos movimentos iniciados por Lewis Hamilton. O que se espera, agora, é que as ideias defendidas pela Fórmula 1 e pelas equipes em suas campanhas de apoio à diversidade, além de se manifestarem pelo uso de sua visibilidade como plataforma de combate ao racismo (o que, diga-se, possui um alcance espetacular na medida em que se trata de uma categoria mundialmente conhecida), passem da teoria à prática no âmbito das próprias organizações. Nesse sentido, a Mercedes preta já é histórica – não apenas pelos excepcionais resultados esportivos, mas, sobretudo, como símbolo de uma causa justa, necessária e que (embora com bastante atraso) enfim chegou à Fórmula 1.
A Mercedes rosa
A Mercedes rosa, aparentemente, não será histórica – mas isso não significa que o caso correlato não seja importante para a confirmação da essência da Fórmula 1 sob o prisma técnico. A expressão faz referência, na verdade, à equipe Racing Point, sucessora da Force India e que tem seus carros pintados (já há alguns anos, incluindo período em que ainda tinha o antigo nome) com a marcante cor rosa. Mas em 2020, ainda mais destacada que a cor é a polêmica envolvendo “similaridades” entre o carro da equipe e o modelo 2019 da Mercedes.
A polêmica alimenta-se de dois aspectos básicos. Primeiramente, a Racing Point vale-se de alguns componentes técnicos fornecidos pela Mercedes, como unidade de potência e caixa de câmbio, e o design do carro da atual temporada remete claramente ao modelo 2019 da Mercedes. Em segundo lugar, a equipe, sétima colocada na temporada passada, deu um imenso salto de qualidade e em 2020 disputa o posto de terceira melhor equipe do grid.
Toda a controvérsia gira em torno da essência da Fórmula 1, que privilegia a disputa entre construtores, limitando os componentes que podem ser fornecidos de uma equipe a outra. A regra 6.3 do Regulamento Esportivo 2020 descreve isso de forma clara e objetiva, definindo construtor como aquele que “projeta os Componentes Listados” (tradução livre do inglês), estabelecidos no Anexo 6 do aludido regulamento. O referido Anexo indica que a concepção e a fabricação dos Componentes Listados podem até ser terceirizadas, mas desde que o terceiro não seja um competidor do campeonato. Por outro lado, há os Componentes Não-Listados, que podem ser fornecidos de uma equipe a outra – de que são exemplos justamente a unidade de potência e a caixa de câmbio, já acima mencionados.
Dentre os Componentes Listados, incluem-se os dutos de freio referidos nas regras 11.4, 11.5 e 11.6 do Regulamento Técnico. Significa dizer que essas peças não podem ser fornecidas de uma equipe a outra; mais do que isso, nos termos da regra 4 do Anexo 6 do Regulamento, é proibido aos construtores fornecer ou receber informações sobre Componentes Listados. E daí advém o cerne da polêmica Mercedes rosa, que levou a equipe Renault a protestar conta a Racing Point.
A suspeita era de que a Racing Point teria copiado os dutos de freio projetados pela Mercedes para seu modelo 2019 – o que implicaria violação das regras acima citadas. E, no início de agosto, os comissários da Federação Internacional de Automobilismo (FIA) acolheram o protesto da Renault, aplicando à Racing Point perda de 15 pontos e multa de 400 mil Euros. Embora a decisão tenha aparentemente preservado a essência da Fórmula 1 (que, repita-se, tem como base a distinção dos carros de cada equipe a partir da definição dos Componentes Listados), a punição foi considerada branda, tendo em vista que não impediu a Racing Point de seguir usando e se beneficiando da peça definida como irregular (na ocasião da decisão, foram objeto de análise três Grandes Prêmios, e desde então mais dois foram disputados). Não por acaso, Renault e Ferrari apelaram da decisão, de modo que o caso segue em aberto.
Enfim, entre o preto e o rosa, a usualmente prateada Mercedes (com a “colaboração” de sua cliente, Racing Point) é protagonista da Fórmula 1 em 2020 nas pistas e também fora delas. E os dois casos, embora absolutamente distintos, podem ser decisivos para o futuro da categoria. De um lado, pela aguardada e necessária busca por maior diversidade no universo da Fórmula 1 (e do automobilismo, como um todo); de outro, pela expectativa de que a FIA afinal prestigie a essência da categoria, que tem na disputa entre construtores um de seus pilares.