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Na pista: os pilotos e a prática profissional do esporte no Brasil

A coluna de hoje tem como ponto de partida um questionamento: os pilotos denominados “profissionais” são efetivamente profissionais? A repetição do termo “profissionais” justifica-se pelo uso de duas acepções distintas da mesma palavra. A primeira menção refere-se ao significado atribuído à palavra pelo dicionário: “que exerce uma atividade por profissão ou ofício”. A segunda, por sua vez, diz respeito à definição de prática esportiva profissional estabelecida na Lei nº 9.615/98 (popularmente conhecida como “Lei Pelé”), que institui normas gerais sobre o esporte. Em outras palavras, a questão a ser respondida é se os pilotos que fazem do automobilismo seu ofício são, à luz da legislação brasileira, atletas profissionais.

A resposta à pergunta passa, necessariamente, pelo exame do artigo 3º, §1º da Lei Pelé. Ali, o legislador estabeleceu que a prática esportiva de rendimento pode se dar de forma profissional ou não profissional[1]. Em resumo, é considerada profissional a prática esportiva se caracterizada por “remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva”; por exclusão, a atividade é não profissional se não se enquadrar nessa definição.

Ocorre que essa definição de profissionalismo, assim como tantas outras disposições da Lei Pelé, é de difícil aderência a diversos esportes – o que, aliás, é um problema grave desse diploma legal. Tomemos como exemplo o tênis: um jogador brasileiro que atue no circuito da ATP (Associação dos Tenistas Profissionais) dificilmente se enquadrará como profissional na legislação brasileira, visto que sua atuação é em nome próprio e não requer qualquer vínculo com entidades de prática desportiva (ou seja, clubes). Da mesma forma, um triatleta que faça do esporte seu ofício e seja remunerado por isso (por meio de patrocínios, por exemplo) também dificilmente será considerado legalmente como atleta profissional.

Nesse ponto, vale destacar o Projeto de Lei do Senado nº 68, de 2017, que tem como objetivo instituir uma Lei Geral do Esporte. Sua elaboração foi precedida de amplos debates e valorosas colaborações de uma comissão de juristas, formada por alguns dos principais especialistas na aplicação do direito ao esporte. Não por acaso, a definição de atleta profissional contemplada em seu artigo 69, parágrafo único, parece bem mais adequada: “Considera-se como atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedique à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tenha nesta atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como receba sua remuneração”. Infelizmente, contudo, a tramitação desse projeto de lei – que tem outros tantos méritos em sua concepção e representaria inegável avanço na regulação do esporte brasileiro – encontra-se estagnada no Senado Federal.

Sendo assim, e voltando à lei em vigor, é importante destacar que o cenário do automobilismo é diferente dos esportes acima citados na medida em que, via de regra, há um vínculo entre o piloto e sua equipe. Portanto, a verificação do enquadramento de cada piloto como profissional ou não profissional dependerá essencialmente da análise da relação jurídica estabelecida junto à equipe – isso porque admitimos que uma equipe pode ser entendida como entidade de prática desportiva. Se houver “remuneração pactuada em contrato formal de trabalho” entre equipe e piloto, este será considerado profissional para todos os fins; caso contrário, a prática esportiva será não profissional. Em outras palavras, somente o cuidadoso exame de cada caso concreto poderá indicar a resposta correta para o questionamento contido no início do texto.

Essa distinção não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, é fundamental para que se possa aplicar corretamente diversas outras normas legais relacionadas ao esporte, tendo em vista o tratamento diferenciado que o ordenamento jurídico confere ao esporte profissional e ao não profissional, conforme preconiza o artigo 217, III da Constituição Federal (ratificado pelo artigo 2º, VI da Lei Pelé).

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) traz bons exemplos desse tratamento diferenciado: os atletas não profissionais não podem sofrer penas pecuniárias (artigo 170, §2º) e estão sujeitos a sanções mais leves que os profissionais, visto que as penas previstas no Código são reduzidas pela metade quando o atleta é não profissional (artigo 182). Por isso, é essencial que o piloto e seu advogado tenham em conta a natureza da prática esportiva na defesa em processos disciplinares que tenham como objeto a imputação de sanções previstas no CBJD.

A atenção a esse aspecto também se revela fundamental para ampliar as possibilidades de captação de patrocínio para os pilotos, as equipes e mesmo as entidades organizadoras de competições de automobilismo. Isso porque a Lei Federal de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438/2006) e o decreto que a regulamenta (Decreto nº 6.180/2007) restringem a utilização de recursos incentivados por atletas profissionais ou equipes que participem de competições profissionais. Outro exemplo de restrição encontra-se na Lei Paulista de Incentivo ao Esporte, cuja regulamentação (Decreto nº 55.636/2010) também não permite o uso dos recursos para despesas de manutenção e organização de equipes profissionais ou competições profissionais.

Enfim, ainda que não seja possível responder genericamente à pergunta que norteia o texto de hoje, pode-se afirmar categoricamente que é muito importante conhecer a real natureza da prática do esporte de rendimento; afinal, defini-la como profissional ou não profissional gera diversas repercussões, sendo as acima mencionadas tão somente exemplificativas. Para tanto, por mais anacrônica que seja, a definição legal contida no artigo 3º da Lei Pelé deve nortear o exame do caso concreto. Somente assim os pilotos e todos os demais stakeholders do automobilismo no alto rendimento podem ter a exata noção de seus direitos e deveres à luz da legislação brasileira.

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[1] A lei não faz nenhuma referência ao termo “amador”, muito embora se utilize essa palavra de forma corriqueira para referências à prática esportiva não profissional (inclusive em decorrência de o termo ser muito utilizado na Lex Sportiva).

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Crédito foto: Duda Bairros/Stock Car.

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