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“Não é assim. É assim!”

Às vezes, algumas coisas parecem ter estado nas nossas vidas desde de que o mundo é mundo, e raramente paramos pra refletir sobre elas. Pense nos gramados, por exemplo. Sempre me impressionei com aquela grama verdinha, bem cuidada, que dá vontade de colocar a mão. Nos estádios, então, uma grama de respeito já é meio caminho andado. Dá pra assistir a – quase – qualquer coisa.

Se, até hoje, a existência desse tapete verde nunca lhe pareceu algo que merecesse mais do que cinco minutos de atenção, vamos dar uma volta, e quem sabe você mude de ideia.

Nas últimas centenas de anos, os gramados estabeleceram uma relação interessante com o poder político, o status e a riqueza¹. Uma história que, dificilmente, estaria alheia ao futebol.

Ao final da Idade Média, aristocratas franceses e ingleses fizeram de jardins e gramados impecáveis a marca registrada da nobreza. Não é difícil imaginar por quê. Em um tempo em que a agricultura era responsável por grande parte do sustento da população, e a maioria das pessoas vivia na miséria, desperdiçar tanta terra com uma extravagância estética era algo que camponeses não podiam se dar ao luxo de bancar. Além de não produzirem, gramados exigiam cuidados diários, demandando altos recursos pessoais e financeiros. Ter um desses significava ocupar determinado espaço na hierarquia social.

Mesmo após a derrocada das autoridades medievais e a ascensão de novas formas de governo, a manutenção dessas extensas áreas verdes continuou servindo para enaltecer palácios republicanos, tribunais, bancos e até mesmo casas de famílias com mais elevado potencial econômico. Com o esporte não seria diferente, e, bem aqui no nosso quintal, o futebol refletia bem essa relação.

Na época em que nasciam Fluminense e Botafogo, encontrar um bom campo onde se pudesse jogar era uma raridade, coisa pra rico, time da zona sul. Como o futebol não respeita hierarquia, e já tinha caído nas graças do povo, quem não tinha a grama verdinha jogava no chão batido mesmo. Era campo, mas era pelado. Daí veio o nome: pelada.

Na pelada, não era só o chão que era diferente. A bola, que no gramado rolava de couro, na pelada podia ser meia ou jornal (este último, se não chovesse). Para fazer as vezes da trave, servia um tijolo de cada lado – ou sandálias, já que se jogava descalço. O importante era o gol não mexer.

Diferentemente do futebol do gramado, cercado dos muros e dos alambrados, o campo careca não tinha critério rigoroso de entrada ou de participação. E porque não tinha muros, também não tinha hora para abrir, nem para fechar. Se podia jogar enquanto dava para enxergar as traves – e a bola, claro.

Conta-se que, naquela época, o clube grande, o que jogava nos gramados, era uma espécie de universidade onde o futebol era ensinado como uma ciência. De preferência, por um professor inglês. Na academia, o professor dizia: “Não é assim. É assim”².

Para quem não era da elite dos “clubs”, não tinha professor. Que tratasse de aprender só de olhar. E de jogar. Talvez por isso, não era obrigado a obedecer às técnicas milimétricas e às jogadas ensaiadas que, a essa altura, já enfeitavam o cardápio dos times. O importante, na pelada, era improvisar. Os moleques, dizia-se, “tinham mania de deturpar as jogadas”³. O futebol inglês, que parecia que ia pegar do jeitinho que chegou, renascia de uma forma diferente, se reinventava nos gestos de quem se divertia. De quem, com ele, se afirmava. Quem é que ia dizer que “não era assim”?

……….

¹ HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
² FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003
³ A expressão é de Mário Filho.

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