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Não repare a bagunça

“Virou bagunça” (1960) é uma comédia brasileira que trata das encrencas em que se mete o grupo musical nordestino “Trio Gerimum”, que vem ao Rio de Janeiro em busca do sucesso.

A vida dos músicos na cidade maravilhosa torna-se uma grande bagunça: sem chance nas emissoras de televisão, decidem cantar na rua, mas são perseguidos pela polícia. Suas peripécias incluem passagens pelo hospício e sequestro por supostos revolucionários do “Partido Comodista Nacional”.

Sessenta anos depois da película, parece que a vida de todos os brasileiros se assemelha em alguma medida às agruras sofridas pelo trio musical. Vivemos numa verdadeira bagunça seja no plano político, social ou institucional, como talvez nunca antes havíamos experimentado.

Sob o ponto de vista jurídico, o cenário é não menos caótico. Temos um Judiciário que legisla, um Executivo que governa por medidas provisórias (invariavelmente não convalidadas pelos outros poderes) e um Legislativo que edita leis casuísticas e em profusão, bagunçando por completo o nosso sistema normativo.

No esporte não é diferente. Basta ver que a Lei nº 9615/98 é uma verdadeira colcha de retalhos, sendo modificada em média a cada dois anos. Foram tantas alterações que os dispositivos da Lei não possuem mais qualquer harmonia entre si, tornando o Diploma um documento de difícil interpretação.

A última mudança deu-se por medida provisória (!), que alterou o art. 42 para atribuir apenas ao clube mandante da partida o direito de arena. A MP bagunçou o regime jurídico dos contratos de transmissão, sem que houvesse qualquer discussão a respeito, numa iniciativa que pegou todos os atores esportivos de surpresa.

Este fato por si só revela que é impossível fazer algum planejamento e investir com tranquilidade no nosso país, ainda mais num segmento que é marcado pela incerteza como é o caso do esporte brasileiro.

Tem mais modificação no horizonte. Com o projeto de lei do chamado “clube empresa” (cuja alcunha não faz jus ao conteúdo), nova penumbra surgirá no mundo do futebol com regimes híbridos de funcionamento, conforme já dissemos em nosso “Dona Flor e seus dois regimes jurídicos”.

De qualquer forma, o regime empresarial não condiz com a realidade do nosso esporte, porque, para que clubes se tornem empresas, é necessário que existam investidores. Mas como atraí-los se a instabilidade é a nossa marca? Se existe uma coisa que o investidor minimante requer para arriscar seu capital é ter segurança jurídica. Mas isso é um bem escasso no nosso país.

Temos uma produção descontrolada de leis, medidas provisórias, regulamentos, decretos, portarias etc. que se acumulam e não raro se sobrepõem. Como se não bastasse, elas são rotineiramente modificadas, revogadas ou invalidadas judicialmente.

No esporte o problema se agrava porque não basta romper a burocracia e as amarras impostas pelo Estado. Há que se embrenhar no mundo das federações esportivas, cuja governança é frequentemente marcada pelo amadorismo, paternalismo, falta de transparência e por regulamentos que também mudam a todo o momento.

Embora seja uma comédia, “Virou bagunça” traz embutida uma crítica à situação socioeconômica do Brasil da época (que por sinal não é bem diferente de hoje) e expõe a dificuldade do povo nordestino em conseguir um espaço nas grandes cidades.

Difícil será igualmente arrumar um espaço para atrair investimentos para o esporte, principalmente o capital estrangeiro. O Brasil vivenciou o boom de aportes externos nos anos 1990, mas a falta de marcos normativos claros e seguros, transformaram o sonho em verdadeiro pesadelo para muitos clubes de nosso futebol. O dinheiro foi embora e nunca mais voltou para o país que deveria ser o mais procurado para receber aportes externos. Afinal, somos a única nação penta campeã mundial…

As chamadas “parcerias” também não deram certo. Os famosos contratos celebrados entre empresas e clubes em que são transferidas àquelas o poder de administrar as agremiações esportivas (sendo remuneradas basicamente com a negociação de jogadores) tornaram-se igualmente objeto de insegurança jurídica. Com a proibição da cessão de direitos econômicos, as empresas passaram a depender dos clubes para lhes repassar os valores recebidos, o que dificilmente ocorria, seja por má-fé dos dirigentes ou por penhora em virtude de dívidas.

Qualquer negócio só avança na base da confiança, pois ninguém se sentirá tranquilo para aplicar recursos em um clube endividado ou fazer parcerias com agremiações que vivam sob constante tumulto político e administrativo e sob a égide de uma legislação errática e oscilante.

Não adianta transformar o clube em empresa se o ambiente não é propício. O dinheiro não virá só por intermédio de uma canetada. É preciso criar um ambiente de estabilidade e credibilidade que não surge de um dia para o outro, ainda mais em tempos de pandemia.

Mas se depois de ler esse texto você ainda assim quiser investir no Brasil e em especial no futebol brasileiro, seja bem vindo!

Fique à vontade!

Só não repare a bagunça.

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