Por Pitágoras Dytz
DICEÓPOLES: Espectadores! Desculpai-me se eu, mesmo sendo um miserável, ponho-me a falar e até a tratar dos assuntos públicos.
CORO: O que vais fazer? O que vais dizer? Saibas que és mesmo um descarado […]
Tu, que queres expor, só tu, opiniões contrárias a de todos!
Os arcanianos, Aristófanes[i]
A certa altura do meu primeiro romance, estela, com letra minúscula mesmo, um dos narradores diz que a primeira palavra é a mais difícil, que não importa o quanto se tenha escrito, a palavra que vai à frente de todas as demais é sempre a mais difícil, que a primeva é sempre a que carrega os maiores encargos. Muitas são as razões que o fazem lançar essa afirmação, as quais não vêm ao caso aqui, pois o próprio não é falar do livro, sobre o qual sou suspeito para falar, embora o ache muito bom; quem quiser saber quais são, e se tenho razão em dizer o que digo a respeito da obra, que o leia, descubra e forme sua convicção. O propósito aqui é outro, mas tem a ver com palavras e com a dificuldade em lançar a primeira delas, o gancho que se fixará na pedra para a escalada que logo se empreenderá e que levará ao cume ou que, caso mal fixado, nos fará despencar das alturas de nossas irrealizadas pretensões. Seja a primeira ou a última, é importante saber escolhê-las.
Diz-se que houve um tempo em que as coisas não tinham nome e que ao homem foi dada a tarefa de nominá-las, sob pena de se ver condenado a sempre ter que fazer como os moradores de Macondo quando viram o gelo pela primeira vez, ou seja, apontá-las com o dedo. Árdua tarefa, pois teríamos de estar cercados por elas o tempo todo, cercados nós pelas coisas, impedidos de explicar o que só no pensamento vai, impossibilitados de entender a Teoria das Ideias. Então as nominamos para que delas, e sobre elas, pudéssemos falar mesmo às suas costas, em sua ausência, quanto mais em sua inexistência física, visível, palpável, a qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar, inclusive no Passado, para diálogos com a gente do Futuro, nossos pósteros, empregadas na escrita. Com elas colocamos cada coisa em seu devido lugar, as classificamos, anunciamos ideias, formulamos conceitos, nos comunicamos; em sua ausência, calamos. Ou apontamos com o dedo, quando possível.
Pensemos então na palavra signo, ela própria um signo, que o Houaiss conceitua de diversas formas. Apostaria que a primeira ideia que te veio à mente é a do símbolo do teu signo no Zodíaco, no meu caso, dois peixes. Desdobrado, dessa imagem sobressaem ideias do que isso quer dizer, notadamente quais as características de alguém nascido sob o influxo daquela constelação zodiacal, dando a esse significado um caráter preditivo, de previsibilidade do que se esperar de alguém de Peixes. Tragamos agora o signo para o campo da semiótica, ciência que os estuda, e pensemos no papel que ele exerce para a formulação das proposições havidas nessa seara; o signo será o objeto, o elemento que veicula a mensagem, ou parte dela, e que tem dupla natureza: sob sua forma ‘sensorial’, é significante; sob a forma invisível, mas compreensível, é significado, aquilo que a sua face, ou corpo, enuncia. Ao fim e ao cabo, são a base, o elemento atomístico e essencial da linguagem. Ainda que possamos apontar uma coisa com o dedo, tal como Gabo propôs, não haverá comunicação nem mesmo entre aqueles que estejam na presença do objeto para o qual se aponta, que o diga para os ausentes. Por isso a sua importância pois, com base neles, uma vez ausentes as coisas, física ou temporalmente – como ocorre quando lemos escritos que datam de séculos atrás, podemos compreender o que os interlocutores, ou o escritor, pretendiam expressar ao deles se valer como emissários de sua mensagem.
Mas tão importante para a comunicação quanto os signos é a comunidade de entendimentos quanto ao significado que cada signo carrega. Cada cultura tem signos que lhes são próprios, escritos ou corporais, que podem significar um sinal de aprovação ou uma ofensa, como o sinal de OK que fazemos com as mãos. Erguer um braço em respeito a César tinha um significado, o qual se desvirtua quando se pensa na saudação ao famigerado Führer.
Pensemos agora em banimento. O Houaiss traz como significado, ato ou efeito de banir, oferecendo como sinônimo outro signo qual seja expulsão e, no que se refere ao campo jurídico, pena imposta a alguém para deixar o país e não retornar a ele enquanto durar a pena. Eis-nos aqui então num campo, o da linguagem jurídica, onde aos signos correntes se agregam significados próprios desse idioleto, que,, por seu turno, ainda segundo o dicionário, pertence ao campo da langue, e não da parole porque trata de particularidades linguísticas constantes, não fortuitas. É dizer: dita em geral, pessoa tem um significado; proferida nas lindes dos campos do Direito, outros tantos e acarretará uma séria de perguntas como, De qual pessoa estamos falando, física ou jurídica?, por exemplo.
E é natural que assim seja, pois, nessa seara, os novos e específicos significados agregados aos signos usualmente utilizados têm caráter constitutivo. Uma sentença não apenas é um signo com significante e significado, mas impõe uma nova realidade fática a partir do efeito próprio de decisão em que se constitui. Pense-se em culpado; o significado é um no campo do Direito, e outro, talvez até mais amplo, fora dele. E é por essa característica imanente dos significados que se agregam aos signos no campo jurídico, e a partir dele se espraiam para fora de suas fronteiras, que impõe-se um dever de cuidado redobrado por parte do intérprete, do jurista, especialmente quando sob as vestes do julgador.
Um dos primeiros registros que se tem da instituição de uma pena com efeitos de banimento é encontrado na Grécia e, talvez aí, o signo tenha encontrado seu primevo significado. Segundo alguns historiadores, Luciano Canfora – O mundo de Atenas, por exemplo, entre muitas penas possíveis de serem aplicadas àqueles que estivessem ao alcance da pólis ateniense, havia a de ostracismo, palavra derivada de ostrakon, espécie de concha – daí a palavra ostra, que, à guisa de cédula eleitoral, era entregue a cada um dos seis mil membros de uma assembleia, que nela escreviam o nome de um deles. Tal qual o impeachment, como instrumento jurídico que era, serviu bem a propósitos políticos escusos, pois não se julgava se alguém era culpado de algum crime ou de coisa do gênero; bastava que se destacasse e representasse um risco à comunidade ou à ordem pública, embora houvesse quem tivesse sido mandado passear, e mais de uma vez, em razão de seu nababesco estilo de vida e quem expusesse ideias contrárias àquelas ditas antidemocráticas. Certo é que, uma vez contados os votos, o mais votado não tinha o que comemorar, pois estava condenado a se retirar da cidade-Estado, só podendo retornar após um período de dez anos; tornava-se estrangeiro. Não perdia a condição de cidadão da cidade da qual acabara de ser banido, e o ostracismo diferia do exílio, eis que este era autoimposto e não resultante propriamente da condenação na ostrakophoria, como se chamava o dia da referida votação.
Ao longo dos séculos, o banimento, entendido como ato decisório de expulsão de alguém para além dos limites das cidades ou país, foi ganhando outros nomes além de ostracismo. Ainda na Antiguidade, foi chamado petalismo – o ostracismo, só que realizado em Siracusa e que, ao invés de utilizar os ostrakons, usava folhas de oliveira. A Bíblia traz a figura do bode de Azazel, o famoso bode expiatório. Na Europa dos Grandes Descobrimentos, havia a pena de degredo – que o digam o Brasil e suas figuras muito bem representadas por João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro, a Austrália, ou os franceses – como Henri Charrière, o Papillon, mandado para a Guiana Francesa já no século XX (1931), como retratam os excelentes livro e filme homônimos.
Mas, apesar desses novos significantes cujo significado prático se assemelha ao signo, a palavra banimento se manteve viva, constando inclusive do léxico jurídico. Esteve previsto no Código Criminal Imperial (art. 50), foi permitido pela Constituição de 1891, desde que não-judicial (art. 70, § 20), foi proscrito pelas de 1934 e de 1946, ressurgindo em 1969 com o AI nº 13, de 5 de setembro de 1969[ii], imposto por decisão do Poder Executivo e sem possibilidade de apelo ao Judiciário. Para este último instrumento, equivalia ao ostracismo. A Constituição Federal de 1988 o proibiu expressamente sob qualquer forma (art. 5º, XVLII), assim como baniu as penas de caráter perpétuo. Já adentrando a seara esportiva, o Código Mundial Antidopagem o previa, mas, em razão da disposição constitucional, quando da sua recepção no Brasil, foi convertido em pena de afastamento por prazo máximo de 30 anos, pena máxima vigente na legislação pátria – agora 40, ex vi da Lei nº 13.964, de 2019, porém inaplicável aos casos de resultados adversos, por ausência de adaptação da legislação específica, leia-se: Código Brasileiro Antidopagem.
É por isso que causa estranheza que aqueles que incursionam pelo campo jurídico, especialmente o do Direito Esportivo – onde a questão voltou à tona com as decisões que condenaram atletas e aliciadores por suposta manipulação de resultados (embora ache que a manipulação foi de eventos de temática esportiva e não de resultados, o que exclui a conduta dos envolvidos do espectro dos tipos previstos no CBJD nos quais foram enquadrados, assunto para outra oportunidade, quem sabe), ainda falem em banimento, mesmo que sabidamente o façam de forma imprópria, ou defendam que não se trata de banimento, mas sim de eliminação.
Ora, não me parece que seja apenas uma questão de modificação de signo e tão só na sua face significante, pois, pela conformação dada pelas decisões até agora proferidas, o significado prático, ou efeito gerado, é o mesmo do banimento visto na Grécia Antiga, com as diferenças de que o ‘espaço’ deixado é a modalidade e não o território da cidade-Estado e, o mais grave, com caráter perpétuo, e não limitado a dez anos, como acontecia com os gregos. Assemelha-se, assim, à previsão que constava do referido Código Criminal do Império, afinal, o condenado acaba excluído de qualquer atividade relacionada à modalidade, ad infinitum.
Se diz então que não apenas não foram condenados a banimento, mas que a pena não é perpétua, pois o condenado poderia valer-se do pedido de reabilitação previsto no art. 99 do CBJD, o que, por si só, afastaria eventual mácula de inconstitucionalidade.
Embora respeite tal ponto de vista, não vejo razoabilidade em interpretações como essa, a começar pelo fato de que ainda que entendêssemos que tal dispositivo consagra a garantia de um direito postestativo – conclusão cuja redação do referido artigo deixa margens para dúvidas relevantes, a análise da constitucionalidade do art. 177 do CBJD, que fixa os efeitos da eliminação, deve ser feita sem levar em consideração a possibilidade de reabilitação, haja vista que, para estar em compasso com a Constituição Federal de 1988, aquele dispositivo deveria estabelecer prazo máximo, e não atribuir ao interessado a adoção de medidas nesses sentido. Veja-se que, na dicção do art. 177, se não exercida essa faculdade conferida ao condenado, de requerer a reabilitação, a pena cominada continuará a gerar os seus efeitos naturais quais sejam o impedimento de qualquer atividade relacionada à modalidade até que já não esteja mais entre os vivos. Logo, a condenação tem caráter perpétuo, até mesmo porque a dita reabilitação nada mais é do que um instrumento que, sob as rachaduras do mal aplicado verniz jurídico, deixa ver as entranhas de instrumento político que há por baixo e que se inspira na figura de uma pretensa ação rescisória, ou revisão criminal. Assim sendo, não é que os efeitos daquela decisão condenatória perderão seu caráter perpétuo caso concedida a reabilitação; eles simplesmente são, ou serão, coarctados em virtude da eventual desconstituição decorrente da decisão posterior proferida pelo mesmo juízo que exarou a rescindida! Ou seja, a reabilitação tem efeitos constitutivos, não declaratórios. Mas a pena imposta continua perpétua, seu cumprimento é que pode vir a ser suspenso ou desconstituído a partir de eventual procedência da reabilitação.
É previsível que se diga que é isso que está na norma e que pouco se pode fazer a respeito. Mas vale lembrar que norma não é só letra. Segundo Humberto Ávila, normas são resultados da interpretação a ser feita pelo exegeta que, por meio de uma análise sistêmica, extrai dos textos normativos seu sentido, seu significado, que, conforme o autor, não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, que, como tal, é cambiante ao longo do tempo. Vale destacar também que, segundo Ávila, há normas sem dispositivo e dispositivo sem normas, donde dispositivo não corresponder necessariamente à norma, e vice-versa. Hermes, de onde vem hermenêutica, traduzia aos homens a vontade dos deuses, conferindo significado àquilo que eles haviam dito de forma que aqueles os entendessem.
Eis porque entendo que embora os dispositivos tenham sido mal elaborados, falte coerência lógica interna ao CBJD, e não haja proporcionalidade (adequação) na previsão da sanção em relação aos bens jurídicos tutelados – eis que se prevê a pena de eliminação tanto para aquele que deixa de apresentar um documento (art. 220, infração formal, como o são os arts. 222, 223, 229, 234 a 240, e 242, e.g.) quanto para aquele que deliberadamente atua para prejudicar a equipe que defende, art. 243, que, assim como o art. 243-A, é tipo material –, no momento do julgamento, o julgador pode, deve [e espera-se que o faça], corrigir essa anomalia. Como? Valendo-se de uma interpretação sistemática e analisando a questão sob o viés da proporcionalidade, aqui visto sob o prisma da necessidade, que impõe ao intérprete escolher entre as medidas disponíveis para atingir determinada finalidade aquela que, sendo adequada à proteção do bem jurídico, resulte no menor prejuízo aos direitos fundamentais envolvidos. Assim agindo, poder-se-ia, em tese, condenar os acusados pela dita manipulação à pena de eliminação, mas estabelecendo, numa interpretação conforme à Constituição, que essa eliminação estará sujeita ao prazo máximo de 30 anos, tal como previsto no Código Brasileiro Antidopagem, limite que foi estabelecido posteriormente à edição do CBJD e que vigora no mesmo campo jurídico do CBJD. Essa medida teria alcançado o fim colimado – punir os infratores com as penas cominadas no preceito secundário do tipo, mas adequando-as àquilo que o sistema jus-esportivo hodiernamente entende como adequado à proteção da ética esportiva, um dos bens jurídicos protegidos pela legislação antidopagem, uma espécie de [tentativa] de manipulação de resultados.
Ver a questão sob o prisma da (des)proporcionalidade da medida adotada pelo STJD do Futebol permite enxergar outros lados dessa questão, a começar por não se ter – até onde se sabe, perquirido quantas ações educativas voltadas ao comportamento ético foram, e são, ofertadas aos atletas envolvidos, a tal ponto de lhes permitir avaliar os prós e contras de suas condutas – embora não seja facultado a ninguém escusar-se do cumprimento da lei sob a alegação de desconhecimento, ou mesmo o próprio julgador questionar se é proporcional eliminar alguém de forma perpétua não só quando mesmo em caso de reincidência em infração às normas antidopagem, o prazo máximo seja de três décadas, mas, especialmente, considerando que, se o tipo penal criado para proteger a integridade esportiva – art. 198 da Lei nº 14.597, de 2023, idêntico ao art. 41-C do Estatuto do Torcedor, ultima ratio do Estado para coibir comportamentos indesejados, preveja como sanção a reclusão de dois a seis anos e multa.
Ainda que se compreenda a existência da independência e autonomia de instâncias, a decisão estatal em matéria penal, que visa proteger a coletividade, há de, senão preponderar, ao menos ser considerada por aquele que assume a tarefa de julgador, pois direitos – e digo isso às portas da comemoração dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem – não são só palavras, são signos cujos significados devem ser descobertos pelos seus detentores, protegidos por seus defensores e garantidos por aqueles que se dizem julgadores.
E nunca é demais relembrar a história, contada por Piero Calamandrei em Eles, os juízes, vistos por um advogado, de um jovem juiz que, respondendo uma carta de um prefeito de uma cidadezinha italiana durante o período da ocupação nazista, na qual lhe exigia a prisão dos jovens que se recusassem a lutar, especialmente por convocação do líder alemão, escreveu: “Sinto muito não poder garantir-lhe o que me requereu. Emprestar os cárceres judiciários para a detenção de inocentes é contrário à lei e ao costume italiano. Desde que sirvo ao Estado na administração da justiça, nuca fiz nada contrário à minha consciência. Deus é testemunha de que não há jactância em minhas palavras.”
Aos condenados, justiça! Aos julgadores, prudência e sapiência. Antes que sejam eles a serem apontados com o dedo como algo ainda carente de definição e significado.
Ah, e por falar em significado, Diceópoles quer dizer cidadão justo.
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Pitágoras Dytz
Escritor, Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte
@pitagoras_dytz
[i] Apud CANFORA, Luciano, O mundo de Atenas, Trad. Federico CArotti, 1ª. ed., São Paulo: Companhai das letras, 2015, p. 96-97.
[ii] Faço esses registros a partir do excelente trabalho de Ricardo Sontag, Tainá Emília Queiroz Ferreira e Vitória Mendes Jacob, Banimento “em sua Forma extra-constitucional” e Cultura Jurídica no Brasil (1969-1978), Revista Culturas Jurídicas, Vol. 4, Núm. 7, jan./abr. 2017, p. 190-219.