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Naturalização ou nacionalização: plano de carreira ou escolha de vida?

O ano de 2022 nos reserva fortes emoções, pois é ano de Copa do Mundo e os olhos do público estarão voltados para as principais seleções do planeta. Afinal, trata-se do maior espetáculo da Terra, que ocorre a cada 4 anos. Essa competição não é somente interessante do ponto de vista do consumidor, como também dos grandes patrocinadores e, é claro, dos atletas, uma vez que é considerado o ápice da carreira de um futebolista.

Nesse sentido, ainda mais na véspera de grandes torneios, é bem comum observar uma movimentação mais impetuosa das Federações Nacionais na tentativa de reforçar suas equipes, aproveitando-se de todos os meios disponíveis, inclusive das particularidades advindas de cada lei pátria. Sendo assim, a obtenção da nacionalidade ou a naturalização do jogador passou a ser um elemento fundamental e, paralelamente, muito controvertido no cenário desportivo internacional.

Em primeiro lugar, não podemos olvidar que a naturalização ou obtenção da nacionalidade são inerentes à legislação de cada lugar. Comumente, dependendo do país, a nacionalidade pode ser adquirida automaticamente, por exemplo, pelo nascimento no território, de acordo com sua ascendência, por meio do casamento, e a naturalização pelo tempo de residência ou até por investimento no mercado local. Geralmente, ela implica em renúncia à sua condição de cidadão de seu país originário.

Nesse contexto, certos países, sobretudo aqueles exportadores de grandes talentos e com grande concorrência em seu plantel principal, como o Brasil e Argentina, viram alguns dos seus jogadores atuarem por outras seleções. Historicamente, sem dúvidas, a Itália é o país preferido dos brasileiros, onde já passaram nomes como Amauri, Éder, Thiago Motta, Dino da Costa e Mazzola. No título da última Eurocopa, estavam presentes 3 jogadores (Jorginho, Emerson e Rafael Tolói). Atualmente, mais dois brasileiros foram convocados pelos azzurri (João Pedro e Luiz Felipe)[1].

Por outro lado, a China adotou o um modelo não somente para fortalecer o futebol a nível de seleções, como também alavancar a modalidade no país, de uma maneira geral. Sob esse viés, a transformação marcante veio acompanhada de um salto de investimento a partir dos anos 2010, o que a tornou um mercado de potência mundial, competindo com o, até então, intocável mercado europeu.

Como não poderia deixar de ser, diversos brasileiros entraram nesse planejamento a longo prazo do futebol chinês, mas somente alguns foram escolhidos e aceitaram atuar na seleção local. Para tanto, tiveram que mudar seus nomes e abrir mão da nacionalidade brasileira. Entre eles, podemos citar: Elkeson, Ricardo Goulart, Aloísio, Fernandinho e Alan. O principal objetivo era a classificação para o Mundial desse ano, o que acabou não se concretizando.[2]

Da mesma forma, os Emirados Árabes Unidos, planejando a qualificação para o Mundial de 2022 e a melhora no nível técnico da sua equipe, iniciou a naturalização de diversos estrangeiros, como os brasileiros Fábio Lima e o atacante Caio Canedo, além do argentino Sebastián Tagliabúe.[3]

Por sua vez, ultrapassando a barreira do futebol, o Catar, que receberá a Copa desse ano, contou com um plano ousado para promover o esporte e para utilizá-lo como propaganda de governo. Para isso, convidava e remunerava desportistas estrangeiros de talento para atuar pelo país nos Jogos Olímpicos e, paralelamente, sediava eventos desportivos importantes no cenário mundial. Entre abril de 2014 e dezembro de 2015, o país chegou a receber mais de 100 eventos internacionais.

Entretanto, a prática da indústria da naturalização chamou a atenção do mundo todo. No Mundial Masculino de Handebol, disputado em janeiro de 2015, dos 16 jogadores da seleção do Catar, nove eram naturalizados, ganhando salários de até 35 mil euros, casa, carro, todas as despesas pagas e possibilidade de viver como um verdadeiro catari no futuro, obtendo ajuda de custo do governo.[4]

Demonstrado como foi e é utilizado o mecanismo da naturalização de atletas ao longo dos últimos anos, retorna-se à análise das consequências e dos conflitos de normativa no esporte bretão. Desse modo, muito embora a FIFA não possa interferir na política e na legislação de obtenção da nacionalidade/naturalização em cada país, pois eles são soberanos, ela pode determinar e regular sobre a elegibilidade do atleta e a nacionalidade desportiva para que possam atuar por sua seleção, que representa um membro filiado e, portanto, sujeito ao regulamento privado e ao sistema piramidal do esporte.

É o que ficou decidido pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS), em um caso que envolvia outro esporte, uma jogadora com dupla nacionalidade e a Federação Internacional de Basquete (FIBA).[5] Uma jogadora de basquete nascida em solo americano, mas que tinha o pai belga e documento emitido pelo consulado belga atestando que ela também possuía a identidade por nascimento.

Sem embargo, nos dois clubes em que atuava, um na Suíça e depois na França, ela havia sido registrada como americana, o que havia contado com assinatura e anuência da atleta. Em seguida, ela foi contratada por um clube belga e quis se registrar como jogadora belga, apta a disputar uma competição europeia de clubes, o que foi negado pela FIBA, que priorizava o local de nascimento nos casos de dupla nacionalidade em seu regulamento, além de estabelecer um período de carência de 3 anos para quem resolvesse mudar de nacionalidade

Em sua defesa, a jogadora alegou violação a liberdade de locomoção dos trabalhadores e dos cidadãos pelo território europeu, como cidadã belga. Outrossim, aduziu que um regulamento privado estaria tratando de temas inerentes ao Direito Público, como a nacionalização de uma pessoa, e que o período de carência era desproporcional.

O TAS rejeitou o pedido da jogadora e aportou fundamentos que trouxeram segurança jurídica necessária até os dias atuais. Detalhadamente, foi apreciado que a nacionalidade legal diz respeito ao ordenamento decorrente da cidadania de um ou mais Estados, sendo a nacionalidade do basquete apenas um conceito desportivo, que define as regras de elegibilidade do atleta para sua participação em competições internacionais.

Em outras palavras, são duas ordens jurídicas diferentes, uma de cunho público, outra de direito privado, que não se sobrepõem e não entram em conflito. As disposições do Regulamento da FIBA, relativas à nacionalidade esportiva única de um jogador de basquete, não afetavam a soberania dos Estados em matéria de nacionalidade.

Posto isso, desfrutando da estabilidade proporcionada pela decisão, podemos afirmar que a normativa privada da entidade máxima do futebol variou ao longo do tempo, adequando-se à nova realidade e respondendo aos casos concretos de maior repercussão. Antigamente, a FIFA impunha que somente bastava que o atleta nunca tivesse vestido a camisa da seleção de seu país natal e adquirisse a cidadania do país que desejasse representar para que pudesse ser considerado elegível.

Diante de denúncias envolvendo três brasileiros convocados para a seleção do Catar em troca de uma suposta compensação financeira, o órgão foi obrigado a criar medidas de urgência para fechar o cerco, entre elas: o atleta deveria ser filho ou neto de um cidadão do país ou jogar no local há pelo menos dois anos. Posteriormente, esse período foi aumentado para cinco anos[6]. O presidente naquela época, Joseph Blatter, era um dos maiores críticos dessa naturalização excessiva, que crescia de maneira exponencial, protagonizada pelos jogadores sul-americanos[7][8].

As pressões políticas são determinantes para moldar as transformações na normativa, porém os casos concretos são tão importantes quanto para ditar os novos rumos da modalidade. O caso de Diego Costa, em 2014, foi um dos mais emblemáticos.

O atleta, residente na Espanha durante anos, foi convocado e atuou pela seleção brasileira em duas partidas amistosas. Contudo, alguns meses depois e irresignado com a não convocação para participar da Copa das Confederações pelo Brasil, desistiu de jogar pela equipe canarinho e optou por se naturalizar espanhol, em razão da confirmação dada pelo treinador de la roja de que ele estaria presente na Copa do Mundo de 2014.

O caso ganhou proporções globais, pois envolvia duas seleções favoritas ao título e um dos melhores atacantes do mundo. A FIFA, com base no seu regulamento, que previa que o jogador poderia se naturalizar e jogar por outra seleção se não tivesse atuado por uma outra anterior em partidas oficiais, decidiu por tornar Diego Costa elegível para jogar com a seleção espanhola. Recorde-se que o atleta disputou duas partidas amistosas, logo, não são tidas como oficiais.

Ulteriormente, outro caso teve uma relevância muito grande e corroborou a mudança do regulamento para os moldes atuais. O atacante Munir El Haddadi[9][10], nascido em território espanhol, com pais marroquinos, tinha jogado 3 partidas oficiais pela seleção sub 21 da Espanha, quando tinha mais de 21, e, anos mais tarde, decidiu jogar pela seleção marroquina para poder disputar a Copa Africana de Nações, em 2021. A solicitação de mudança da nacionalidade não foi aceita pela FIFA e o recurso da Federação Marroquina foi desestimado pelo TAS.

Ocorre que, todavia, a entidade máxima do futebol reviu seu regulamento, e entendendo a complexidade do tema, editou um documento com comentários das regras de elegibilidade para jogar pelas seleções nacionais[11], presentes no Regulamento de Aplicação do Estatuto FIFA, mais detidamente no capítulo 3.[12]

Os principais pilares dessa mudança foram: a elegibilidade deve ser baseada em uma avaliação objetiva para determinar a nacionalidade do jogador, tratamento equitativo para todas as Federações membros, existência de um vínculo genuíno entre o jogador e a seleção que ele representa ou deseja representar, evitar casos de gravidade excessiva ou inflexibilidade, prevenir abusos (exemplo: “compra de nacionalidade”) e, por fim, proteger a integridade esportiva das competições internacionais.

Desse modo, os atuais critérios que determinam se o jogador possui nacionalidade são: quando se outorgar automaticamente, como no caso do nascimento, sem ter que realizar qualquer outro trâmite administrativo ou se ele se submeter a um processo de naturalização. Em via de regra, todos os jogadores que tenham participado (parcial ou totalmente) com uma associação em um jogo oficial de competição, em qualquer categoria, não podem participar de uma partida com uma seleção pertencente a outra Federação.

No entanto, o artigo 9º impôs várias exceções das quais Munir não podia se enquadrar, pois já havia feito 21 anos quando da sua última partida pela seleção de base espanhola, logo se valeu de uma interpretação favorável da entidade no documento com os comentários ao regulamento, que foi altamente benéfica ao atleta.

Nesse contexto, a FIFA afirmou que esse quesito de idade não seria aplicável aos jogadores que tivessem performado pela primeira seleção antes da entrada em vigor do novo entendimento, pois eles não podiam, de nenhuma maneira, prever que tal participação poderia impedi-los de mudar de Federação no futuro.

Por seu turno, a questão do vínculo com o país ficou bem definida pelos artigos 6 e 7. No primeiro deles, utilizado para quem já possui mais de uma nacionalidade, portanto, apto para jogar por ambos, o jogador teria que ter nascido no território da federação, ou um dos pais biológicos ou um de seus avós do jogador nasceu no território da Federação, ter residido há pelo menos cinco anos no país.

Já no artigo 7º, utilizado para os que adotarão uma nova nacionalidade, os requisitos são semelhantes, mudando quanto ao tempo de residência para: i) aos jogadores que passaram a residir naquele território antes dos 10 anos: pelo menos três anos; ii) aos futebolistas que começaram a residir naquele território entre os 10 e os 18 anos e após os 18 anos: pelo menos cinco anos.

Por fim, é válido aclarar que a exigência de idade, o período mínimo de residência, a limitação de jogos e a limitação de participação em jogos internacionais, no mais alto nível, garantem que a integridade esportiva das competições internacionais seja adequadamente protegida.

Conforme o exposto nesse artigo, a questão da nacionalização ou naturalização pode ser utilizada para o benefício técnico das seleções e dos próprios atletas como plano de carreira e para poderem atuar nas competições mais exigentes e assistidas do planeta. Simultaneamente, de modo inevitável, há um julgamento através da imprensa e do público sobre a verdadeira intenção do atleta ao optar por esse destino.

Não podemos descartar que, em função do longo período de convivência e estadia em um país, criam-se laços e raízes bem sólidos, como uma nova família, uma residência, amigos e um lugar acolhedor para uma vida pós aposentadoria. Acima de uma escolha de carreira, é uma escolha de vida. Ao mesmo tempo, uma presença em uma competição de elite é uma realização profissional que pode representar um ganho financeiro, além do pessoal.

Em outra situação, mas sempre dentro do tema, o TAS[13] chegou argumentar que o único mecanismo válido para regular a nacionalidade esportiva é a utilização de critérios objetivos e verificáveis, pois é obviamente complicado definir, avaliar e testar os vínculos emocionais, sentimentais e culturais que um atleta sente ou tem com um determinado país, porque, em grande parte, são questões subjetivas. Isso exprime perfeitamente como deve ser a normativa.

Não há espaço para julgamentos subjetivos e passionais quando da análise do tema naturalização/nacionalização. Seja um plano de carreira ou uma escolha de vida, são decisões totalmente pessoais. A regra está justamente para impedir abusos e garantir o correto desenvolvimento da modalidade.

Crédito imagem: Carl Recine/Reuters

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[1] Dupla jogará pela Itália: lembre brasileiros que se naturalizaram para defender outras seleções – Fotos – R7 Futebol – última consulta: 22.03.2022

[2] Naturalização de jogadores na China: renúncia à nacionalidade brasileira e novo “batismo” | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 22.03.2022

[3] Com brasileiros, Emirados Árabes naturaliza estrangeiros para ir à Copa do Mundo – ISTOÉ Independente (istoe.com.br) – última consulta: 22.03.2022

[4] Naturalização como política: Catar usa poder financeiro para atrair talentos (globo.com)

[5] TAS 92/80 B. v. FIBA – TAS xxx (yale.edu) – última consulta: 22.03.2022

[6] Emirados Árabes pedem maior flexibilidade à Fifa para naturalização de jogadores – 04/05/2011 – UOL Esporte – Futebol – última consulta: 23.03.2022

[7] Blatter quer combater naturalização excessiva de sul-americanos (terra.com.br) – última consulta: 23.03.2022

[8] Jogadores naturalizados são cada vez mais numerosos em equipes que disputam com Brasil a Copa … – Jornal O Globo – última consulta: 23.03.2022

[9] El TAS desestima el recurso de Munir, que no podrá jugar con Marruecos – AS.com – última consulta: 23.03.2022

[10] La FIFA publica una guía sobre elegibilidad para las selecciones | IUSPORT: EL OTRO LADO DEL DEPORTE – última consulta: 23.03.2022

[11] Comentários sobre as regras de elegibilidade – wx7c6j9yjttl5iqgabfl-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 23.03.2022

[12] Regulamento de Aplicação do Estatuto FIFA, p.75 – FIFA-Legal-Handbook-ES.pdf – última consulta: 23.03.2022

[13]CAS 2007/A/1377 Melanie Rinaldi v. FINA – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 23.03.2022

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