Por Pitágoras Dytz
Como escritor, sei que não é ordinário, nem usual, que um texto comece por um ponto final. É da natureza das coisas – ou deveria ser – que, como o próprio nome já diz, o ponto final encerre algo, seja literalmente, como uma frase, um texto, por exemplo, ou figurativamente, “Já disse que não e ponto final”, expressão de que minha mãe se valia sempre que pretendia ver uma discussão com um dos filhos, ou com meu pai, terminada sem mais delongas.
Mas, num paradoxo que apenas o inusitado de certas situações legitima, um ponto final pode fazer as vezes de um início, já não de uma frase, por mais impactante que esta seja, mas de uma história inteira e que, pelo rápido e convulso desenrolar dos fatos, parece longe de seu ponto final. E é pelo ponto marcado por Wallace, oposto do Sada/Cruzeiro, na finalíssima da Superliga Masculina de Voleibol, que retorno a uma história que, num cenário de normalidade, há muito já deveria ter tido seu desfecho, fosse com as suspensões fixadas pelo Conselho de Ética do COB, de 90 dias (eventos da CBV) e um ano (selecionado brasileiro, por exemplo), em decisão para lá de contestável em muitos aspectos, fosse pelo tempo decorrido.
Mas quiseram os homens, e não os deuses do estádio, que aquele tento, o ponto final do campeonato, tivesse efeito dúplice, a um só tempo pondo fim a uma competição, vencida pelo time mineiro, e dando início à outra, a de quem manda mais ou vence no grito. A diferença entre ambas é que uma tinha regras claras, ganha quem vencer o maior número de sets; a outra, ainda é incerta, pois tem suas regras desveladas a cada jogada, jogadas essas que se sucedem, a priori, conforme o interesse de parte dos jogadores, e que surpreendem a todos pelo caráter inaudito e desproporcional, tendo as linhas da disputa traçadas ao arrepio do bom senso.
Se, por um lado, o ponto marcado por ele no final do terceiro set garantiu a taça da competição, por outro, fez transbordar a da irascibilidade do colegiado deontológico do COB e seus sequazes. Tomada como uma afronta, e não como o exercício de um direito assegurado pelos órgãos competentes, leia-se: STJD do Voleibol, secundado pela câmara de arbitragem a qual submetida uma dúvida – criada como que sob medida pela Confederação Brasileira de Voleibol – sobre a valência de decisões, que, diga-se de passagem, em nenhum aspecto seriam conflitantes, num agir de trazer memórias nefastas mesmo ao kafkiano Sr. K., colocando em prática o conselho de um certo Maquiavel, de que o mal deve ser feito de uma só vez, aquele colegiado resolveu não apenas majorar a penalidade imposta ao atleta – de noventa dias e um ano para cinco anos em ambas as hipóteses – mas distribuir sanções a torto e a direito. À Confederação, suspensão de seis meses do sistema COB e suspensão de recursos, materiais e financeiros, necessários à manutenção da modalidade; ao seu presidente em exercício, suspensão de um ano.
Embora volte a esta história, sobre a qual escrevi em 10 de fevereiro passado – https://leiemcampo.com.br/caso-wallace-ou-a-etica-do-justicamento/ – agora o faço não sob o enfoque do Direito, pois, sob esse prisma, a questão se resolve por si tão kafkaesca é, e muita tinta e muitos pixels já foram gastos para falar da incompetência do CECOB para a imposição de sanções de natureza desportiva, ou para apontar a evidente falta de apego dos conselheiros ao que preceitua a Constituição Federal; o faço agora sob o prisma da ética, que tão facilmente confundimos com moral.
Mais de uma vez, Hannah Arendt alertou para o fato de que tomamos ética como sinônimo de moral. Na sua última obra, A vida do Espírito – Pensar, a filósofa sustenta que essa tendência a tomarmos uma coisa pela outra a ponto de as questões sobre o bem e o mal serem enfrentadas tanto num curso sobre moral quanto num sobre ética, tem base filológica, uma vez que “moral vem de mores e ética de ethos, as palavras latina e grega para costumes e hábitos, sendo a palavra latina associada a regras de comportamento, ao passo que a grega é derivada de habitat, como a nossa palavra ‘hábitos’”.
E essa confusão entre moral e ética está presente também no agir do Conselho de Ética do COB, tanto que, já na decisão de 3 de fevereiro de 2023, afirmou que o atleta, mais ainda o atleta olímpico, e sobretudo os campeões olímpicos devem ter em mente que a sua conduta reflete na sociedade de maneira diferenciada, na medida em que o esporte – desde a Grécia antiga e presente no conceito previsto nos ideais do Barão de Coubertin – tem a função de realizar princípio [sic] éticos e morais de toda uma coletividade. Vê-se que, para além de conhecer muito pouco do contexto histórico grego da época dos jogos olímpicos, ou apenas o ter de orelhada, pois se esquece que a violência grassava entre os gregos, inclusive nos Jogos – que o digam os lutadores e espectadores do pancrace, e que o atleta era visto como um aristoi cujos ‘valores’ não eram partilhados senão por seus pares, pois nem todos se viam entre os escolhidos pelos deuses – toma ética por moral de forma indistinta.
Apesar da origem linguística distinta, mores e ethos designam o mesmo fenômeno social. Isso inclusive está bem definido no Dicionário Houaiss da língua portuguesa, que não deixa dúvidas de que a distinção entre termos e seus respectivos conceitos não se circunscreve apenas ao campo filosófico. No verbete dedicado a éthos, o glossário traz diversas definições, dentre as quais destacam-se: “conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, ideiais ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região”, “conjunto de valores que permeiam e influenciam uma determinada manifestação (obra, teoria, escola etc.), artística, científica ou filosófica”, ou, ainda, “caráter pessoal; padrão relativamente constante de disposições morais, afetivas, comportamentais e intelectivas de um indivíduo. Por seu turno, moral é conceituada tanto como o “conjunto de valores, individuais ou coletivos considerados universalmente como norteadores das relações sociais e das condutas dos homens”. Diferentes verbetes para diferentes fenômenos. Vê-se, pois, que embora pudessem ter recebido a mesma tradução, mores virou moral e ethos, ética.
Mas isso não quer dizer que, embora vertido para o vernáculo como ética e que esta se inspire em ethos, ela não exista por si só como fenômeno distinto ou que possamos passar ao largo do que seja apenas porque nos pomos a falar em moral. Para o mesmo tira-teimas, ética é a “parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social”, mas também o “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade”.
Princípios, valores, pertencem ao campo da moral; à ética compete apurar quais são eles e como se expressam no seio de um determinado grupo, de uma dada comunidade. Mas que valores são esses, que informam comportamentos desejáveis no seio da sociedade, sobre os quais a ética se debruça? Numa permissão que o campo da Filosofia da Moral permite, talvez seja mais claro ao entendimento se trocarmos valores por virtudes.
Mas então, a virtude o que é?
No preâmbulo de seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André Comte-Sponville diz que virtude é “uma força que age, ou que pode agir”, um “poder, mas poder específico” para cumprir aquilo que é em potência, aquilo que nasceu para ser, lembrando-nos de que “a virtude de um ser é o que constitui o seu valor, em outras palavras, sua excelência própria”, ressalvando, entretanto, que a as virtudes independem “do uso que delas se faz, como do fim a que visam ou servem”. Uma faca será virtuosa se cortar bem, pois foi para isso que foi feita, a cicuta que matou Sócrates será virtuosa por ter cumprido seu desígnio, matando-o após sua ingestão. Se a faca foi feita para cortar e é virtuosa por cortar bem e se o veneno é virtuoso por sua capacidade de matar, então as virtudes são inatas e prescindem de outras finalidades para serem o que são?! Sob esse prisma, uma faca não será menos virtuosa nas mãos de um cozinheiro, do que nas de um assassino, nem o veneno ao matar um ser humano, ainda que acidentalmente, ao invés de uma barata.
Objeta-se, entretanto, que, diferentemente do homem, facas e venenos não têm vontade. Qual então a virtude do homem, aquilo em que excele, é excelente?
Em Ética à Nicômaco, Aristóteles nos diz que é aquilo que o diferencia dos animais, ou seja, a vida racional. Tomando pela ponta desse fio, Comte-Sponville pontua que “a razão não basta: também é necessário o desejo, a educação, o hábito (…) o desejo de um homem não é o de um cavalo, nem os desejos de um homem educado são os de um selvagem ou de um ignorante.” Relembrando a lição do filósofo grego, que defendia que, como valores que condicionam comportamentos, as virtudes podiam ser ensinadas e aprendidas, algo com que Hannah Arendt não concordava, Comte-Sponville afirma que “toda virtude é (…) histórica, como toda humanidade, e ambas, no homem virtuoso, sempre coincidem: a virtude de um homem é o que faz humano, ou antes, é o poder específico que tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, sua humanidade” (…) “Mas como, sem os outros homens? A virtude ocorre, assim, no cruzamento da hominização (como fato biológico) e da humanização (como exigência cultural); é nossa maneira de ser e de agir humanamente, isto é (…), nossa capacidade de agir bem.”
E o que é agir bem e devidamente? É, mais uma vez, Aristóteles quem nos dá a pista ao afirmar que a virtude é uma disposição adquirida para fazer o bem, ao que Comte-Sponville remata dizendo que o “bem não é para se contemplar, é para se fazer”. Mas como? Se, como diz o filósofo francês, “pensar as virtudes é medir as distâncias que nos separa delas”, qual o instrumento de que dispomos para saber se agimos bem e se estamos de acordo com elas, com os valores que criamos na nossa interação social e que, em tese, reverberam a mediana das disposições de caráter da nossa sociedade?
Nesse ponto, não há como escapar a Kant e ao seu imperativo categórico, constructo que recomenda que o indivíduo deve agir de tal forma que possa desejar que sua ação se torne uma lei universal, aplicável a todos, inclusive a si mesmo. Essa recomendação moral reverbera ensinamento, também moral, ainda mais antigo, conforme consta em Lucas 6:31, que registra Jesus dizendo, “Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles.” Ou seja, esse verdadeiro preceito hermenêutico para uma ação moralmente correta, para fazer o bem, que está também presente nas obras de Spinoza e Santo Agostinho, vem nos acompanhando ao longo dos séculos e tem tentado manter coesa a sociedade. É uma máxima da nossa humanidade e do nosso próprio desejo de humanidade. Não se pode querer que haja [e que se mantenha a] unidade social se cada indivíduo pretender, e aceitar, que haja sempre dois pesos e duas medidas. A coesão social e o viver harmonioso em sociedade exigem que a mesma regra valha para todos, ainda que com derrogações razoáveis.
É certo que não se pode esperar que cada um estabeleça seu parâmetro de conduta e pretenda que ele seja aplicável para todos de forma obrigatória. A horizontalidade do convívio social e a máxima da igualdade entre os homens – aí outro valor intrínseco ao viver em sociedade – afastam essa dupla pretensão. Mas podemos estabelecer paradigmas que permitam a cada um avaliar sua própria conduta em relação ao ‘imperativo categórico coletivo’. E assim temos feito. Com a palavra, Ulpiano: Iuris praecepta sunt haec: honest vivere, suum cuique tribuere et alterum non laedere, leia-se: Os preceitos de direito são: viver honestamente, dar a cada um o que é seu e não lesar aos demais. O segundo deles – suum cuique tribuere – inclusive está pintado na sala do Conselho de Estado francês na qual ocorrem os julgamentos, o que condiz com outra máxima que ancora o Direito à virtude: Jus est ars boni et aequi: “O direito é a arte do bem e da justiça”.
Como visto, bem é a excelência, é o objetivo do agir humano. Mas e a justiça, o que é?
A justiça pode ser vista como adequação ao Direito e como igualdade ou proporção, legalidade e igualdade. Sob esse aspecto, recorro, uma vez mais, a Aristóteles: “O justo é o que é conforme à lei e o que respeita a igualdade, e o injusto é o que é contrário à lei e o que falta com a igualdade”. Mas uma lei pode ser legal e injusta, conforme ao direito – para os positivistas especialmente – mas contrária à moral, donde se pode ver que a justiça também pode ser vista por esse viés: o da moral. Como virtude, ela é cardeal, e ainda com arrimo em Comte-Sponville, não é como as outras, “ela é o horizonte de todas e a lei de sua coexistência (…) todo valor a supõe; toda humanidade a requer”.
Como virtude é uma disposição adquirida para fazer o bem, todos somos dotados de um senso de justiça. A criança que diz que não é justo o castigo que os pais lhe impõem, ou o indivíduo que se sente injustiçado ao ser levado a trocar um bem que estima por pouco ou nada em razão da necessidade, numa injustiça motivada pela desproporção da troca, um torcedor que vê seu time jogar bem a partida inteira mas tomar um gol no último lance do jogo, perdendo o campeonato, e que protesta que aquilo é injusto, demonstram isso, esse caráter inato dessa virtude, desse valor moral que tanto diz com o verniz formal de um julgamento quanto com o seu mérito.
Temos agora todo o cabedal conceitual necessário para nos perguntarmos se o agir dos membros do Comitê de Ética – especialmente a decisão que majorou a pena do jogador e impôs sanções à CBV e seu presidente – pode ser considerado ético, pois (re)afirmo que, sob o ponto de vista jurídico, válido não é. E o mesmo vale para essa pergunta.
Assim como os iuris praecepta, outros princípios, nascidos como virtudes e, portanto, surgidos no campo da Moral, adentraram o campo do Direito e passaram a constituir um ‘imperativo categórico coletivo’ a partir do qual cada indivíduo teve retirado e pode retirar de sobre os ombros o peso de definir a régua moral – e legal – para medir a distância entre sua conduta e aquela senão desejável, ao menos aceitável, pela coletividade em que vive. Exemplo disso são a boa-fé, a imparcialidade (“Fazer o bem e a justiça sem olhar a quem”), e também as garantias constitucionais. Salvo os déspotas, os néscios e os despidos de razão, ninguém vai considerar justo um julgamento em que o acusado não pode ser ouvido, ou suas alegações não são realmente consideradas. O que sairá daí não é justiça, é justiçamento, não é julgamento, é vingança. Se não é justo, não será ético nem hoje, nem nunca. Nunca o foi, nem será, pois “o combate pela justiça não terá fim”.
E não se entenda que estou aqui a defender que o agir do atleta seja moralmente aceitável ou defensável, pois não o é. Longe disso. No entanto, o fato dele ter agido de forma antiética – e que poderia sustentar uma punição se corretamente aplicada – não legitima que aqueles a quem se confiou a tarefa de zelar pelos valores universalmente adotados como norteadores das relações sociais e das condutas dos homens num determinado momento e numa determinada comunidade desvirtuem sua essência para simplesmente impor-lhe uma punição. Àqueles a quem se legitimou, de a partir do que está posto na norma escrita, proferir decisões que estabelecem um padrão de conduta desejável por parte daqueles submetidos ao código de conduta do qual são guardiões, exige-se não só que não confundam os fenômenos e institutos, mas, principalmente, não decidam de forma que contrarie o éthos da sua comunidade, seja a esportiva, seja a nacional. E isso inclui enxergar esse éthos de forma ampla – a isso nos convida Gadamer quando fala em fusão de horizontes, não olvidando que aquilo que decidem olhando para o passado, fixa as balizas morais que nortearão os comportamentos futuros, que estabelecerá o novo imperativo categórico. Essa é a lógica do precedente e por isso o respeito aos princípios e regras sobressai em importância; são os precedentes que estabelecem a nova régua moral com a qual serão julgados os comportamentos realizados a partir de sua fixação, com a qual cada um avaliará sua conduta. Se ele é firmado sem respeito aos princípios básicos de justeza, mais do que de justiça, guardará em si o ovo da serpente que envenenará e matará os pósteros – quiçá a comunidade inteira – que dele se valerem. Quem afirma que o atleta “rompeu o mínimo ético esperado de um esportista” demonstra que, em tese, conhece que mínimo é esse, e também o seu dever, devendo estar, desta forma, acima da tentação de agir como ele, quanto mais de vingar-se, pois estará estabelecendo não apenas um precedente ruim ou régua moral defeituosa, estará agindo de forma ilegítima e imoral. O malferimento a um valor é chaga que os pensos do Direito são incapazes de curar. Só um agir moralmente conforme o padrão ético até então vigente pode fazê-la sarar, e ainda assim ficarão sequelas na comunidade. Que o digam os alemães e os russos nos anos do nazismo e do stalinismo.
Não se descarte, claro, que o imperativo categórico do colegiado possa não ser o categórico, mas o hipotético, aquele em que se miram mais as consequências do ato, um ‘se queres isso, então ajas assim’. Embora possa ser útil para se alcançar uma determinada finalidade, ele não tem a autoridade daquele e nem se transformará em uma lei moral. Ainda que não se saiba qual seria essa finalidade – ou que seja outra que não fazer a devida justiça, e seria legítima ou justa, seria imoral pressupor o contrário, pois isso seria pressupor a má-fé, o que redundariam em agir imoralmente.
Mas que nunca nos esqueçamos que, como disse Comte-Sponville, justo é aquele “que põe sua força a serviço do direito, e dos direitos, decretando nele a igualdade de todo homem com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer.” E, como disse Montaigne, “não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente”, e agir contra essas máximas, é agir de forma ilegítima, indevida e imoral, o que não corresponde ao bem, nem é belo.
Crédito imagem: Wander Roberto/Inovafoto/CBV
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