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Neymarcunaíma: herói ou anti-herói do futebol brasileiro (Parte final)

“Vinha iluminado, relampeava todo de ouro e prata embandeirado e festeiro.”¹

A vitória na Olimpíada do Rio de Janeiro deu novo ânimo ao herói e ao futebol brazuca. O comando da seleção passou a ser do treinador Tite, e a equipe começou a colecionar vitórias expressivas nas eliminatórias da Copa de 2018, como contra a Argentina, além de resgatar o jogo coletivo, jogando por música e navegando em mar aberto nessa competição… “Todos os tripulantes na frente da música acenavam chamando Macunaíma e eram marujos forçudos, eram argentinos finíssimos e eram tantas donas lindíssimas pra gente brincar até enjoar com os balangos das ondas.”²

A fase era boa para o herói. O Paris Saint-Germain, conduzido por um sheik, fez uma proposta ao craque que o transformou no jogador mais valioso da história do futebol. Apesar de já ambientado ao costume catalão, aceitou o novo desafio e seguiu para a Cidade Luz. “Quando Macunaíma chegou na cidade já era noite fechada e ele foi logo tocaiar a casa do gigante. Tinha neblina sobre o mundo e a casa estava sem ninguém de tanta que era a escureza.”³

A chegada com status de herói ao time parisiense, segundo a imprensa europeia, não foi bem-vista pelos jogadores do clube. A turbulência ficou evidente após um desentendimento com um companheiro uruguaio por conta de uma cobrança de pênalti. “Os dois manos iam-se quando escutaram Inglês falando pra Uruguaio: — Que posso fazer agora! Não possuo mais anzol que a piranha engoliu. Vou pra vossa terra, conhecido. Então Macunaíma fez um grande gesto com os dois braços e gritou: — Espera um bocado, tapuitinga!”⁴

O herói passou a ser novamente contestado… Herói, anti-herói ou herói/anti-herói? “Macunaíma ia ficar desapontado com o sucedido quando escutou uma bulha e enxergou do outro lado do corgo um chofer gesticulando feito chamado. Ficou muito sarapantado e gritou tiririca: — Isso é comigo, colega! Sou francesa não! — Sai azar! o rapaz fez.”⁵

O ano de 2018 era muito esperado e começou com o “pé direito”. O mundial seria a grande oportunidade de conquistar de vez a “Muiraquitã”⁶, pois, além de o craque estar jogando um futebol de alto nível, a seleção brasileira apresentava grande campanha e era uma das favoritas ao título. Ocorre que em fevereiro o jogador sofreu uma fratura no “dedinho” do pé direito e precisaria operar. A operação foi feita pelo médico da seleção, que previu o retorno aos gramados em três meses, às vésperas da Copa.

“No outro dia por causa da machucadura Macunaíma amanheceu com uma grosseira pelo corpo todo. Foram ver e era a erisipa, doença comprida. Os manos trataram dele bem e traziam diariamente pra casa todos esses remédios pra erisipela que os vizinhos e conhecidos, todos esses Brasileiros aconselhavam.”⁷

Devido à lesão, o herói só voltou a atuar duas semanas antes do mundial, nos amistosos pré-Copa. A expectativa da comissão da equipe brasileira era de que o jogador estivesse em plenas condições na segunda fase do torneio mundial. A mídia já contestava sua condição, mesmo inicialmente em silêncio. “O mundo ficava mudo não falando um isto e o silêncio vinha amulegar a mornidão da sombra na igarité. E se escutava lá no longe lá no longe baixinho baixinho o ruidejar do Uraricoera. Então dava mais entusiasmo no herói. A violinha repinicava tremida.”⁸

Já na primeira partida da Copa, Neymar foi muito caçado pelos adversários, sofrendo dez faltas. O empate mostrou as dificuldades da seleção brasileira para encontrar os buracos do queijo da defesa suíça. Na segunda partida, o herói marcou seu primeiro gol na edição do campeonato, mas toda a equipe ficou devendo. A vitória sobre a Costa Rica veio nos acréscimos, e no final do jogo o herói desabou. “Maginou sorumbático muito tempo e no fim sacudiu a cabeça murmurando: — Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são… Enxugou a lágrima, consertou o beicinho tremendo. Então fez um caborge: Sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho preguiça todinho de pedra. Partiram.”⁹

O terceiro jogo seria decisivo para a classificação, e sem susto o Brasil venceu os servos. Mesmo com a passagem para a fase seguinte, o camisa 10 do Brasil começou a ser perseguido por alegações de que estava simulando faltas e encenando. “E pulavam se livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto dele, se agachava e gemia de fadiga.”¹⁰

O sombreiro mexicano era a barreira seguinte. Neymar abriu o placar em um jogo muito disputado e recebeu muitas faltas, além de ser pisado por um jogador adversário. A vitória veio, mas nesse momento a imprensa mundial já tinha escolhido qual seria a sua sina naquele mundial. “Macunaíma campeava, campeava. Soltava grito de lamentação encurtando com a bulha o tamanho da bicharada. Nada. O herói varava o campo, saltando na perna só. Gritava: — Lembrança! Lembrança da minha marvada não vejo nem ela nem você nem nada!”¹¹

Nas oitavas o herói, que voltava a ser anti-herói, rotulado até como “vergonha do futebol” por alguns tabloides, teria pela frente os diabos vermelhos. O esperado chocolate belga era bom mesmo, mas não foi saboreado pelo camisa 10. “Logo o céu se escurentou de sopetão e uma nuvem ruivor subiu do horizonte entardecendo a calma do dia. A ruivor veio vindo veio vindo e era o bando de araras vermelhas e jandaias, todos esses faladores, era o papagaio-trombeta era o papagaio-curraleiro era o periquito cutapado era o xarã o peito-roxo o ajuru-curau o ajuru-curica arari ararica araraúna araraí araguaí arara-taua maracana maitaca ararapiranga catorra teriba camiranga anaca anapura canindés tuins periquitos, todos esses, o cortejo sarapintado de Macunaíma imperador. (…) Era uma bulha de águas deuses e passarinhos que nem se escutava mais nada e a igarité meio parava atordoada. Mas Macunaíma assustando os legornes riscava de quando em vez um gesto diante de tudo.”¹²

A derrota para a Bélgica colocou em xeque o futebol brasileiro de novo, assim como o herói. Os franceses levaram o caneco, e os “memes” relativos ao jogador viralizaram na internet. Ao grito de “Neymar”, crianças, cachorros e até senhoras rolavam sem parar. Seria justa essa condenação moral para um jogador que, quatro anos antes, poderia ter ficado tetraplégico exatamente por ser verdadeiramente caçado em campo? Novamente se tornou anti-herói! “Macunaíma se consolou pensamenteando: ‘O mal ganhado, diabo leva… paciência’.”¹³

Recuperar do trauma não é fácil! “Macunaíma perguntou pro frade: — Como se chama o nome de você? O frade pôs no herói uns olhos frios e secundou com pachorra: — Eu sou Mendonça Mar pintor. Desgostoso da injustiça dos homens faz três séculos que me afastei deles metendo cara no sertão. Descobri esta gruta ergui com minhas mãos este altar do Bom Jesus da Lapa e vivo aqui perdoando gente mudado em frei Francisco da Soledade. — Está bom, Macunaíma falou.”¹⁴ Talvez até hoje não tenha havido ainda recuperação plena, mas a vida segue! É preciso aprender a aguentar as faltas no jogo!

Em 2019 a meta é ganhar a Copa América em casa, ou melhor, a obrigação é ganhar, pois no Brasil ganhar é obrigação. Precisamos começar com o “pé direito”, e logicamente a esperança é depositada no herói/anti-herói/herói-anti-herói. Só que… “Uma feita janeiro chegado Macunaíma acordou tarde com o pio agourento do tincuã. No entanto era dia feito e a cerração já entrara pro buraco… O herói tremeu e apalpou o feitiço que trazia no pescoço, um ossinho de piá morto pagão.”¹⁵

Em um jogo do campeonato francês, após receber três faltas seguidas no mesmo lance sem cair ou encenar, o herói fraturou o osso do “dedinho” de outrora. Interessante frisar que, mesmo machucado, o troco do craque no truculento adversário foi dado com um cinematográfico chapéu. Após a constatação da fratura, boa parte da mídia fez coro contra o camisa 10, pedindo que não participe da competição que irá ocorrer no país.

Chegado o fim desta rapsódia, já não podemos afirmar se Macunaíma é Neymar ou se Neymar é Macunaíma. Talvez nem Mario de Andrade possa. Entretanto, seguindo as lições do filósofo Sócrates, tendo em conta que a vida irrefletida não vale a pena ser vivida, além das lições do jogador Sócrates, pedimos a reflexão sobre a identidade do futebol brasileiro, inclusive para poder ousar buscar uma classificação adequada ao Neymar. Para nós, certamente o Neymar é herói! É herói porque é um dos poucos da atualidade que preservam as características do futebol pentacampeão, com traços e lampejos de Pelé, Garrincha, Rivelino, Zico, Romário, Ronaldo, Ronaldinho, etc.

“Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.”¹⁶

O futebol brasileiro respira!

……….
1 a 16 – Trechos e termos do livro “Macunaíma”, de Mário de Andrade.

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