Na mesma semana em que se completam 65 anos do suicídio de um presidente eleito pelo voto, em razão de ter se visto acossado por militares e políticos conservadores que minaram de todos os modos sua resistência por meio de ataques referentes a supostos casos de corrupção (nunca comprovados) e um nebuloso atentado ao principal líder da oposição (Carlos Lacerda), volto a falar justamente desta que é considerada a maior liderança política brasileira de todos os tempos: Getúlio Vargas. É dele o legado da modernização das relações trabalhistas e da industrialização mais avançada, principalmente em razão do início da siderurgia e exploração de petróleo, setores que deram ao Brasil maior autodeterminação no campo internacional.
Não diferentemente, no campo esportivo a modernização se deu por meio de uma intervenção estatal, o que era coerente não somente com a ideologia varguista como com o robustecimento do controle estatal sobre setores amplos da vida social em todo o mundo.
Obviamente que esta ingerência se deu ainda sob o Estado Novo e antes da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial no combate ao nazifascismo. Se a primeira Lei Geral do Esporte houvesse sido aprovada após o governo eleito de Vargas, com participação do Congresso Nacional e em uma situação de maior abertura democrática, esta intervenção poderia ter sido evitada.
Contudo, como consta de meu livro “Constituição e Esporte no Brasil” (Ed. Kelps, 2017), a edição por Getúlio Vargas do Decreto-lei 3.199, de 1941, redigido pela Comissão Nacional de Desportos, dotava o Estado brasileiro de controle praticamente absoluto sobre a administração esportiva no país, atrelando todas as entidades esportivas ao sistema encimado pelo novo Conselho Nacional de Desportos (CND).
O próprio João Lyra Filho (Introdução ao Direito Desportivo, 1952, p. 146), que relatou ter participado só incidentalmente na elaboração do Decreto-lei em referência, o criticou abertamente mais de uma década depois em sua obra magna para o direito esportivo (id. ibid., p. 120):
Anoto esta contradição inicial: a instituição do desporto desceria do govêrno ao povo, em vez de permanecer, como reconhecido, como substância de um movimento popular de massas, projetado em clima de comunhão democrática.
Ademais, a nova norma resolve por estatizar também a organização do futebol, reconhecendo somente a CBD como sua representante no país. Antes, ainda em 1935, o Estado Novo já havia submetido o registro de atletas à “Censura Theatral”, uma prévia intervenção federal em favor da CBD, que passa a usufruir de sua influência no governo para controlar os contratos esportivos (ibidem, p. 120). Contudo, mesmo a CBD era formalmente submetida ao CND, conforme disposto no mesmo Decreto-lei n. 3.199, de 1941 (arts. 9º, 12 e 13), mutatis mutandis, uma entidade que encimava o sistema esportivo nacional sem qualquer autonomia.
Para Manoel Tubino, a regência do Decreto-lei persistiu por quarenta anos, somente tendo sido superada na década de 1970, conforme se vê na passagem abaixo:
Esse período persistiu até 8 de outubro de 1975, quando ocorreu a Lei 6.251. Foi marcado por um grande número de deliberações do CND que sempre reforçaram a posição forte do Estado sobre as sociedades esportivas. Os alvarás para funcionamento de entidades esportivas, os registros, as aprovações de estatutos das entidades, a normatização dos passes no futebol profissional, as normas para transferências de atletas, as aprovações dos códigos disciplinares e muitas outras imposições constituem vasta folha de ações do CND no sentido do cumprimento do Decreto-lei nº 3.199/1941, então vigente. Os Conselhos Regionais de Desporto constituíam-se nos braços do CND nos Estados. (TUBINO, M. 500 anos de Legislação Esportiva Brasileira: do Brasil Colônia ao início do Século XXI. Rio de Janeiro: Shape, 2002, p. 39)
E, como a CBD era também a representante de boa parte das modalidades olímpicas brasileiras, além do igual controle sobre as demais não submetidas a ela, durante muito tempo a Pirâmide Olímpica foi cumeada pelo próprio Estado em nosso país, por meio do referido colegiado controlado pelo governo.
Passo abaixo a demonstrar como o Decreto-lei impunha este regime de controle estatal sobre a organização esportiva nacional na reprodução de seus próprios dispositivos:
Art. 9º A administração de cada ramo desportivo, ou de cada grupo de ramos desportivos reunidos por conveniência de ordem técnica ou financeira, far-se-á, sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, nos termos do presente decreto-lei, pelas confederações, federações, ligas e associações desportivas.
Art. 12. As confederações, imediatamente colocadas sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, são as entidades máximas de direção dos desportos nacionais.
Art. 15. Consideram-se, desde logo, constituidas, para todos os efeitos, as seguintes confederações:
I – Confederação Brasileira de Desportos.
Il – Confederação Brasileira de Basket-ball.
III – Confederação Brasileira de Pugilismo.
IV – Confederação Brasileira de Vela e Motor.
V – Confederação Brasileira de Esgrima.
VI – Confederação Brasileira de Xadrez.
Parágrafo único. A Confederação Brasileira de Desportos, compreenderá o foot-ball, o tenis, o atletismo, o remo, a natação, os saltos, o water-polo, o volley-ball o hand-ball, e bem assim quaisquer outros desportos que não entrem a ser dirigidos por outra confederação especializada ou eclética ou não estejam vinculados a qualquer entidade de natureza especial nos termos do art. 10 deste decreto-lei; as demais confederações mencionadas no presente artigo teem a sua competência desportiva determinada na própria denominação.
Art. 17. As atribuições de cada confederação, assim como sistema de sua organização e funcionamento, deverão ser definidos nos respectivos estatutos.
Parágrafo único. Os estatutos iniciais de cada confederação, e as suas sucessivas reformas, só entrarão a vigorar depois de aprovados pelo Conselho Nacional de Desportos, em parecer homologado pelo Ministro da Educação e Saúde.
Ora, como o art. 9º acima transcrito dispunha que cabia o CND a superintendência de cada modalidade, ela se dava na prática tanto pela obrigatória submissão dos estatutos das entidades olímpicas à aprovação do Estado por meio desse Colegiado (art. 17, parágrafo único) como na definição no próprio Decreto-lei do monopólio de modalidades esportivas em sua maioria pela CBD (art. 15).
Não havia liberdade para se organizar outras modalidades fora deste modelo, mesmo que a despeito do que o sistema autônomo transnacional do esporte que hoje denominamos por Lex Sportiva dispusesse.
E como já havia dito acima, o Decreto-lei determinou que mesmo o futebol se submetesse à CBD, contrariando o pacto Vasco-América que havia posto fim ao Dissídio Esportivo e filiado os clubes à Federação Brasileira de Futebol (FBF) para fins de campeonatos internos, restando à primeira tão somente a representação internacional, ou seja, a Seleção Canarinho.
Com a intervenção estatal de 1941, portanto, a CBD passa a ser monopolista do futebol e de quase todas as outras modalidades olímpicas, submetendo-se, entretanto, ao Estado por meio do CND.