Dois casos recentes mostram que um inimigo do esporte permanece vivo, e atuante. No tênis, a eslováquia Dagmara Baskova foi punida por manipular resultados de seus jogos e, no futebol, o inglês Kieren Trippier também foi recebeu punição grave por quebrar regras relacionadas a apostas. Tudo isso atinge um dos pilares do esporte: a integridade.
A manipulação de resultados é um dos maiores inimigos do esporte. E é fácil entender por quê.
Esporte vive da incerteza
A graça do esporte está na incerteza do resultado. Se todos soubessem de véspera qual seria o placar de um jogo, o esporte perderia força, e a paixão encolheria. Por isso vários dos princípios do direito esportivo visam garantir essa imprevisibilidade, como a integridade esportiva, o jogo limpo, e a paridade de armas, que é dar condições iguais aos competidores.
Daí porque é fundamental, entre outras coisas, combater a manipulação de resultado.
Normalmente essa fraude ocorre por interesse financeiro, mas ela também agride a natureza do esporte. E não é um problema recente no esporte, é histórico.
O “CBJD” de 1942 já trazia punições contra a manipulação de resultados
O professor Wladimyr Camargos lembrou em coluna no Lei em Campo que a resolução do Conselho Nacional de Desportos (CND), de 4/11/1942, que traz a primeira Lei Geral do Esporte, dispunha acerca de um tema bastante caro nos dias de hoje: a manipulação de resultados de partidas e competições.
O texto original assim regia o assunto:
33.
- d) será motivo de eliminação do atleta a participação ou cumplicidade em tentativa de suborno, destinado a causar, promover ou facilitar a derrota de um quadro, bem come o fato de ter conhecimento da tentativa e não denunciá-la imediatamente
35.
Estará sujeito a grave punição aquele que, direta ou indiretamente, induzir ou tentar induzir o atleta a proceder, em campo, de maneira desvantajosa para o quadro a que pertence, ou a algum árbitro ou linesman, com o Propósito de persuadi-lo ao desempenho da função, por forma que assegure ou facilite a vitória de uma determinada associação. Apurada a infração, o responsável ficará inhabilitado [sic] para ocupar cargo ou função em entidade desportiva e para ser sócio, atleta, dirigente, treinador, massagista ou empregado a serviço dos desportos. Se do fato ou fatos compreendidos neste item resultar a responsabilidade de alguma entidade desportiva, será esta suspensa e, no caso de reincidência, ser-lhe-á cassada pelo C. N. D. o direito de funcionamento.
Ou seja, os dispositivos transcritos visavam proteger o esporte de alto rendimento contra atitudes que atuavam contra a igualdade do esporte. Mesmo lá em 1942, quando o Direito Esportivo começava a ser entendido e aplicado no Brasil, já se via a necessidade de proteger a integridade do esporte.
E ainda hoje, o esporte no Brasil e no mundo se vê ameaçado.
O tênis, o futebol…
Após “vender” e manipular resultados de seus jogos, a tenista da Dagmara Baskova recebeu uma punição de acordo com a gravidade dos fatos: ela não poderá atuar profissionalmente nos próximos 12 anos.
A punição foi anunciada no final de dezembro de 2020 pela Unidade de Integridade do Tênis (TIU), entidade encarregada pela investigação. A atleta ainda terá que pagar uma multa, estipulada inicialmente em quase R$ 200 mil.
Segundo a Associação Internacional de Integridade nas Apostas, a manipulação de resultados envolve uma indústria de criminosos em vários esportes. Só em 2019 houve 37 casos. O tênis liderou as denúncias, com 17 casos suspeitos.
Para combater a manipulação, o tênis investiu em Integridade.
Responsável por investigar manipulações de resultados, a TIU é um órgão anticorrupção que supervisiona o tênis profissional. A organização, que foi criada em 2008 por iniciativa da ITF, ATP, WTA e dos quatro torneios do Grand Slam (Australian Open, French Open, Wimbledon e US Open), tem a política de tolerância zero para a corrupção relacionada às apostas.
Com operação independente, e com sede em Londres, a TIU é financiada pelas organizações responsáveis por sua criação. Além de combater a corrupção, ela investiga e repreende infratores.
Outro caso do futebol também foi notícia no final de 2020.
A Fifa decidiu liberar para jogar o lateral-direito do Atlético de Madrid e da seleção inglesa, Kieran Trippier, depois que o jogador foi punido há duas semanas pela Football Association (FA) com uma suspensão de 10 semanas e multa de 70 mil libras (R$ 490 mil na cotação atual) por quebrar regras relacionadas a aposta.
A entidade máxima do futebol anunciou no último domingo (3) que irá analisar o recurso apresentado pelo clube espanhol.
Neste recurso, o Atlético de Madrid alega que o período de suspensão não influenciaria em qualquer jogo da seleção da Inglaterra e deixaria apenas o próprio clube, sem culpa sobre o caso, prejudicado com a ausência do jogador. Com a decisão, o lateral está disponível para atuar pelos colchoneros até que a entidade analise o apelo pela diminuição da pena.
Tudo aconteceu em 2018, quando Trippier apostou, de forma indireta, na sua transferência do Tottenham para o Atlético de Madrid, ato que violou as regras de apostas feitas pela FA.
“Uma comissão reguladora independente foi nomeada para ouvir o caso, com quatro das supostas violações comprovadas e três rejeitadas durante uma audiência pessoal subsequente”, disse a FA ao anunciar a punição do jogador.
Caso o recurso seja negado, o Atlético de Madrid poderá recorrer na Corte Arbitral do Esporte (CAS), instância máxima da justiça desportiva.
Tanto o futebol, como o tênis e outros esportes estão se protegendo internamente. E a autorregulação é um caminho indispensável.
Importância da autorregulação do esporte
Em 2020, a autorregulação do esporte brasileiro deu passos tímidos, muito em função da pandemia. Mas a tendência é que esse processo seja acelerado em 2021.
O Fair Play Financeiro da CBF deve – enfim – sair do papel. O Licenciamento de Clubes deve ser aprimorado também.
Mesmo assim, iniciativas como “Rating Integra”, proveniente do Pacto pelo Esporte, já mostraram como compromissos com Integridade atraem marcas dispostas a apoiar o desporto.
As entidades esportivas precisam entender que seus regulamentos não podem mais ser omissos em questões caras ao esporte. No caso da manipulação, essa autorregulação precisa proibir que jogadores, treinadores e árbitros sejam apostadores. Além disso, o trabalho de monitoramento, com o auxilio da ciência e tecnologia se tornam vitais para combater essas quadrilhas cada vez mais sofisticadas.
Claro que o Estado precisa atuar também no combate a corrupção e manipulação de resultados. Uma lei que tipifique corrupção privada no esporte como crime já seria um avanço gigantesco (olha o PL 68/17 que está no Senado). O projeto de Lei Geral do Esporte está nas mãos do Senador Roberto Rocha (PSDB/MA), relator do PL, e está parado desde 2018. O Senador Romário (Podemos/RJ) disse em entrevista ao Lei em Campo que irá retomar essa discussão necessária ao esporte em 2021.
Em função da necessária autonomia que tem, o esporte também precisa investir nessa autorregulação.
Assim como o tênis, o futebol, o vôlei, o basquete… precisam se proteger da manipulação de resultados, garantindo algo que é a essência de todo e qualquer esporte: uma disputa limpa e igual.
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