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No tempo dos Incas- uma história do automobilismo virtual brasileiro

O automobilismo é um dos raros esportes passíveis de ser perfeitamente reproduzido no ambiente virtual. A sensação de pilotar, o equipamento, a dificuldade, a ambientação das pistas reais pode ser levada para dentro de casa, bastando um bom monitor, um volante, dois ou três pedais e um jogo capaz de decentemente simular a física, a sonoridade e a emoção de um carro de corrida.

Meu primeiro contato com um – que me lembre – foi na primeira metade dos anos 1990. Indycar Racing. Publicado pela Papyrus (lendária Publisher de jogos de corridas), foi uma obra de arte para a época, ainda em disquete. Tive o prazer de conseguir guardar a caixa – pesadíssima, cheia de manuais e detalhes sobre a temporada desportiva da Formula Indy, coisas maravilhosas para uma então criança viajar vendo fotos e fotos de carros e querendo andar com eles naquele jogo.

Mas o verdadeiro jogo de corrida seria lançado em 1996: Grand Prix 2. Publicado pela Microprose, era um game revolucionário. Além de conter fielmente todos os carros, pilotos e pistas de Formula 1 da temporada de 1994, o “GP2” permitia o jogo multiplayer em diferentes computadores. Ou seja, “online”. Usava-se um método de conexão com a outra máquina chamado TCP/IP Cable, isto é, tinha-se de conectar os PCs por um cabo e digitar o código TCP correspondente a cada um. Pronto. Ainda que não fosse exclusividade do GP2 – outros jogos da época contavam com o mesmo recurso, como o Indycar Racing II (sucessor do acima mencionado) –, a perfeição gráfica, a física, a jogabilidade (excelente com teclado ou volante, agradável aos novos jogadores e atenciosa com aqueles mais hardcore, desejosos de simulação) tornaram o Grand Prix 2 um sucesso absoluto.

O Grand Prix 2 foi um dos embriões da comunidade de automobilismo virtual brasileiro, mas não pelo modo multiplayer – pois ainda incipiente, limitado ao mesmo espaço físico. Um dos diferenciais do jogo era a possibilidade de realizar voltas rápidas (hotlaps), sozinho, e salvá-las. Assim, o jogador poderia assisti-las novamente e comparar a trajetória, os pontos de frenagem e o estilo mais adequado a obter o melhor de cada pista. Inclusive, poderia compartilhar com outros jogadores, via internet, para que estes pudessem assistir e dar dicas.

O nível de detalhamento que o Grand Prix 2 trazia para o setup do carro também era inovador, fazendo dele um verdadeiro simulador. Caso o jogador quisesse, poderia refinar mais e mais os ajustes no carro e aprimorar seu conhecimento sobre mecânica, física e automobilismo para melhorar o desempenho no jogo. Coroando a cereja do bolo, o GP2 era muito fácil de ser modificado pela comunidade, a fim de que os carros, pistas e pilotos fossem constantemente atualizados com as temporadas de Formula 1 subsequentes (ou mais antigas), ampliando o interesse e a longevidade pelo jogo. Bastava fazer o download de um software chamado GP2 Edit e baixar os kits de carros, pilotos e pistas disponibilizados pelos fãs nos fóruns. Tudo isso ainda nos anos 1990.

Naturalmente, o cenário competitivo surgiu. Campeonatos de HotLaps começaram a ser criados por fãs. Havia regulamentos para que cada jogador não obtivesse vantagens desiguais – como proibir cortes de pista, limitar a gama de ajustes no setup e limitar o número de assistências disponíveis ao jogador, por exemplo. Cada participante deveria, numa determinada pista, com o carro inscrito no campeonato, enviar, dentro de um prazo limite, seus principais arquivos de HotLap da semana.

Esse ambiente permaneceu similar no sucessor, o Grand Prix 3, lançado pela Microprose em 1999 (reproduzindo a temporada de 1998 da F1). Verdadeira obra prima, esse jogo reunia as mesmíssimas qualidades, mas tinha gráficos e jogabilidade incrivelmente superiores às de seu antecessor, mantendo comunidade de fãs e os campeonatos de HotLaps ativos por muitos anos.

Eu, mesmo, comecei a jogar GP3 em 2000 e até 2005 participei recorrentemente de campeonatos de HotLaps, sem sequer ter um volante (o teclado dava conta).

Contudo, com a internet cada vez mais acessível, os jogadores da virada do milênio estavam cada vez mais sendo atraídos para jogos online, em todos os gêneros. No RPG, migrava-se para o MMO; Diablo II e suas runs e rushs estavam absolutamente em alta; Counter-Strike era um fenômeno. No automobilismo virtual, não foi diferente.

Foi nesse cenário em que a Papyrus – a mesma do Indycar Racing – lançou, talvez, a maior e mais revolucionária obra do automobilismo virtual mundial: o Nascar Racing 2003.

Além de reunir todas as características necessárias a um bom simulador de corridas – lançadas pelo Grand Prix 2 e aperfeiçoadas pelo Grand Prix 3 – o NR 2003 permitia, com excelência, a realização de corridas online com até 40 (quarenta) jogadores simultâneos! E com uma estabilidade absurdamente alta, gráficos ótimos e simulação perfeita de uma corrida de Nascar.

Não se pode esquecer: as velocidades de internet eram de 2003. E o jogo permitia 43 jogadores! É algo que até hoje a Codemasters, com as velocidades de conexão atuais, deve ter dificuldade de reproduzir. E, sinceramente, qualquer PC era capaz de rodar o jogo, o que lhe atribui um fator de capilaridade enorme.

Nesse ambiente, no Brasil, emergiram duas grandes Ligas: a Confederação Brasileira de Automobilismo Virtual (CBAV) e a Liga Brasileira de Nascar (LBN). A segunda, restrita a essa maravilha que era o NR 2003. A primeira, porém, com uma maior gama de jogos, embora essencialmente a grande maioria dos campeonatos fossem baseados no NR 2003 e em sua ampla disponibilidade de mods feitos pela comunidade.

Obviamente, eu não iria ficar de fora. Fui atrás de um volante – Logitech MOMO, substituído em 2006 por um Logitech G25 que tenho até hoje – e comecei, ainda em 2005, a competir num campeonato baseado num mod de IRL (Indycar) para o Nascar 2003. Regulamentos extensos detalhavam número de corridas, tempo de prova, custo e prazos de inscrição, sistema de pontos, regras de conduta e, até mesmo, a possibilidade de protesto por parte de um jogador, descontente com a ação de outro, a ser deliberada por uma comissão disciplinar. Havia moderadores dentro da corrida para assegurar o bom andamento e transmissão ao vivo em algumas etapas (tudo isso em 2005, repita-se). A competitividade era altíssima e, para vencer, era preciso treinar rotineiramente, assistir voltas de outros pilotos, preparar o carro e, claro, contar com a sorte de não se envolver num acidente, numa falha mecânica, numa queda de energia ou de internet. As provas eram extensas (a duração variava de 70% a 100% de uma prova real da Nascar, ou seja, 2h a 3h30 de corrida), reproduzindo todas as regras reais (reabastecimento, troca de pneus, bandeiras amarelas etc).

Fui feliz em participar desse ambiente até 2009/10, tendo, inclusive, organizado algumas edições do CBAV Truck Series, juntamente de meu pai, um campeonato baseado nas caminhonetes que correm na Nascar. As pinturas eram todas personalizadas, por piloto e equipe. Voltei em 2017, correndo algumas etapas da LBN, pela equipe CTR, vencendo em Indianápolis, mas me aposentei novamente.

A Papyrus, por incrível que pareça, faliu em 2004, não sem deixar grande legado. Seus programadores, ex-trabalhadores e entusiastas se juntaram e criaram o que, talvez, seja o jogo mais perfeito a simular corridas de carros atualmente: iRacing. Trata-se de um jogo tão preciso, absolutamente exigente em preparo físico, técnico e mental, que é impossível dissociá-lo da experiência, da sensação de uma corrida real. Não é mero entretenimento. É, queiram ou não, um verdadeiro esporte eletrônico.

Crédito imagem: Leandro Godoi/Divulgação

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