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Nocauteado, mas de barba

Em 2004 o peso pesado britânico Danny Williams desafiou o então campeão mundial de boxe, o ucraniano Vitali Klitschko. A luta seria em Las Vegas, um porta-retrato sempre colorido do liberalismo e do capitalismo ocidental. Antes mesmo de os dois subirem ao ringue, uma disputa gigante. Muçulmano, ele descobriu, tão logo foi marcado o confronto, que precisaria tirar a barba, já que ela é proibida no boxe.

A alegação das entidades esportivas recai na preservação da saúde dos atletas, já que, de acordo com elas, a barba esconderia machucados no rosto, como também poderia atingir os olhos do oponente, trazendo riscos à integridade dos lutadores. Mas como fazer se os atletas usam barba por princípios religiosos?

Um caso importante que foi a julgamento aconteceu no Canadá. Pardeep Nagra é da religião sikh. E ele segue os valores que são caros a ela – um destes, a preservação da barba. Acontece que a Associação Internacional de Boxe Amador (AIBA) exigia que os atletas estivessem “devidamente barbeados” para serem examinados antes das competições e lutassem com o rosto “limpo”.

O caso foi a julgamento nas cortes canadenses. Um conflito transconstitucional decorrente da relação entre Lex Sportiva e normas de direitos humanos previstas em ordenamento jurídico estatal.

Em 1998, Nagra recorreu ao Tribunal de Direitos Humanos de Ontário. O Tribunal acolheu o pedido do atleta, afirmando que a proibição da barba violava direitos humanos. Ele poderia lutar, desde que cobrisse a barba com uma rede.

Ele venceu o campeonato estadual e se qualificou para a competição nacional, organizada pela Associação Canadense de Boxe Amador. A competição era seletiva para os Jogos Olímpicos de Sidney, 2000.

Já prevendo problemas, o lutador se antecipou e conseguiu uma liminar na Corte Superior de Ontário para que pudesse participar da competição, independentemente de ter ou não barba. A Associação Canadense precisava decidir entre acatar a decisão judicial e se sujeitar a possíveis sanções da AIBA ou seguir a regra técnica da Associação e desafiar decisão da Corte. O que ela fez? Cancelou a competição até que saísse uma sentença. E ela foi favorável a Nagra. A Associação Canadense acatou a decisão, e ele participou da competição.

Venceu na Justiça, mas sofreu com o preconceito. Opiniões xenófobas e preconceituosas eram proferidas com frequência contra o canadense. Em entrevista, ele desabafou: “A parte mais frustrante com a qual tive de lidar durante o processo e ainda lido hoje em dia era ser visto e reconhecido como canadense que sou”.

Mesmo com a vitória no Canadá, a proibição da barba no boxe continua sendo aplicada pela AIBA. Vários atletas que se recusam a tirar a barba por convicções religiosas seguem sendo excluídos de competições.

Como escreveu o professor Vinícius Calixto no livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos”, “o caso de Nagra é mais um a evidenciar que alterações na direção de cumprimento de normas de direitos humanos no âmbito da Lex Sportiva podem consolidar longos processos compostos de avanços e recuos”.

Interessante destacar aqui que os casos de proibição de barba no boxe acontecem mais no chamado boxe amador (olímpico) do que no boxe profissional. Neste último, mais comercial, existe sempre uma negociação entre as partes antes das lutas.

Foi o que aconteceu na luta de Williams contra Klitschko. Por acordo entre as partes, ele subiu ao ringue em busca do título mundial dos pesos pesados. Conseguiu trabalhar, sem atacar sua fé religiosa. Foi nocauteado. Caiu, mas de barba.

……….
Mais sobre o caso no livro do professor Vinicius Calixto, “Lex Sportiva e Direitos Humanos”
Ontario Superior Court. Nagra v Canadian Amateur Boxing Association, 99-CV-180990, de 12 de janeiro de 2000.

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