Por Tiago Gomes e Carla Guttilla Lacerda [1]
O artigo 18-A da Lei Pelé, introduzido em 2013, é uma das maiores conquistas para a melhoria da governança das entidades que compõem o chamado Sistema Nacional do Desporto, que incluem os Comitês Olímpico e Paraolímpico; as confederações e federações desportivas; as ligas nacionais e regionais; as entidades de prática desportiva e os Comitês Brasileiros de Clubes e de Clubes Paraolímpicos.
Fruto de um primoroso trabalho de advocacy de atletas e associações preocupados com a melhoria dos padrões éticos do esporte nacional, o texto é também cuidadoso o bastante para gerar um tremendo incentivo para que essas entidades adotem melhores práticas de governança, sem, com isso, desrespeitar a autonomia organizativa assegurada pelo artigo 217, inciso I, da Constituição Federal.
Faz isso de maneira quase graciosa: entidades desportivas organizem-se da forma que bem entenderem. Mas somente poderão receber recursos da administração pública federal direta e indireta (que segundo dados do TCU – TC 021.654/2014-0 – representou entre 70% e 80% do total de financiamento do esporte olímpico brasileiro entre os anos de 2010 e 2016), se adotarem princípios elementares de governança.
Como exemplos desses princípios de governança estão a alternância de poder; a destinação criteriosa de recursos; a transparência na gestão e adoção de boas práticas contábeis; e a tomada de medidas que assegurem maior participação e representatividade nos processos eleitorais para os seus órgãos de administração e fiscalização.
No entanto, neste momento, a interpretação sobre a aplicação intertemporal de uma dessas regras, a saber, a exigência contida no inciso I do artigo 18-A, que estabelece que o presidente ou dirigente máximo das entidades desportivas tenham o mandato de até 4 (quatro) anos, permitida uma única recondução, tem gerado alguma polêmica.
A questão que se coloca é se a limitação a uma única recondução dos dirigentes máximos das entidades esportivas se aplicaria àqueles dirigentes que estavam no cargo no momento da entrada em vigor do artigo 18-A, reconduzidos uma vez após a sua entrada em vigor, e, portanto, impedidos de tentar uma “segunda” recondução, ou se a limitação passaria a se aplicar apenas aos mandatos iniciados após a sua entrada em vigência, independentemente se os atuais mandatários já estavam no cargo quando da entrada da lei em vigor.
A discussão ganha especial relevância neste momento porque, publicada em 15 de outubro de 2013, a alteração legislativa que incluiu o artigo 18-A à Lei Pelé entrou em vigor em 16 de março de 2014. Como há uma tendência de que os ciclos de gestão das entidades desportivas sejam coordenados com os ciclos olímpicos, o primeiro mandato de 04 (quatro) anos dos presidentes das entidades que se adaptaram ao referido dispositivo se encerraram no final de 2020 ou se encerram em 2021, dando início aos processos eleitorais nas referidas entidades e suscitando a discussão.
A esse contexto se soma o Parecer nº 00155/2020/CONJUR-MC/CGU/AGU, em resposta à consulta formulada pelo Diretor de Projetos da Secretaria Especial do Esporte. Nele, a Consultoria-Geral da União sustenta que o disposto no inciso I do §3º do artigo 18-A da Lei Pelé, que estabeleceu que seriam respeitados os períodos de mandato do presidente ou dirigente máximo eleitos antes da sua entrada em vigor teria tido “a intenção de deixar claro que eleições realizadas anteriormente, mesmo que com prazo de mandato superior à (sic) 4 anos serão respeitadas, exatamente porque, quando referidas eleições ocorreram, não existia a limitação de tempo de mandato, inexistindo qualquer grau de retroatividade na aplicação da nova regra.” Assim, concluiu que “presidentes ou dirigentes máximos que já se encontravam eleitos em abril de 2014 logicamente exercem mandato e devem, portanto, ser o mesmo considerado para a contagem da limitação de apenas uma única recondução, já que a lei que limita está em plena aplicação, bem como é indiscutível que tem mandato em exercício; não havendo, assim, que se falar em retroatividade na aplicação da nova regra. Dessa forma, presidentes ou dirigentes máximos que já se encontravam eleitos em abril de 2014 poderão concorrer a reeleição e exercer apenas mais um mandato consecutivo de até 4 anos.” (destaques originais)
No entanto, em nossa opinião, a análise sistêmica do ordenamento não permite essa conclusão. Como já dissemos, a beleza do artigo 18-A é justamente que ele estabelece um grande incentivo para que o esporte nacional melhore a sua governança sem, com isso, desrespeitar a Constituição. Isso deve valer, também, para o respeito à irretroatividade da lei prevista no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, e no artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
Respeito esse que, como reconheceu a Consultoria-Geral da União, norteou a redação do inciso I do §3º do artigo 18-A. Embora fosse desnecessário, porque os supracitados dispositivos já garantiriam a irretroatividade da norma, o legislador expressamente reconheceu que os prazos dos mandatos em vigor naquela data seriam respeitados.
O que justificaria, então, que se desrespeitasse por uma aplicação retroativa da lei, eventuais normas estatutárias de entidades desportivas que, à época da entrada em vigor do artigo 18-A da Lei Pelé, permitissem a recondução ilimitada dos presidentes ou dirigentes máximos com o mandato em curso naquele momento?
O ponto fulcral aqui é avaliar se, na data de entrada em vigor do artigo 18-A o estatuto da entidade desportiva em questão permitia a recondução por mais de uma vez de seu presidente ou dirigente máximo. Se a resposta é positiva, entendemos então que a limitação a uma única recondução somente se inicia para os mandatos iniciados após a sua entrada em vigor.
Nesse sentido, seria inclusive irrelevante, sob a perspectiva das normas de direito intertemporal previstas na Constituição e na LINDB que vedam a aplicação retroativa das leis, se essa alteração estatutária se deveu à necessidade de se adequar ao disposto em lei federal ou à mera vontade de se alterar as disposições estatutárias para melhor adequá-las aos princípios de boa governança, evitando a perpetuação das estruturas de poder.
Em qualquer dos casos, a alteração do estatuto que estabelecesse a limitação a uma única recondução de seu presidente ou dirigente máximo somente seria aplicável aos mandatos iniciados após referida modificação. Assim, posteriormente à alteração do estatuto, qualquer que seja o presidente ou dirigente máximo que tenha sido eleito – ou seja, independente se exercia ou não mandato antes da mudança estatutuária –, este terá o direito a concorrer a uma recondução.
Nessa interpretação sistêmica, não nos parece que seja possível defender que nessas entidades em que o presidente ou dirigente máximo com mandato na data de entrada em vigor do artigo 18-A da Lei Pelé, e que tenham sido reconduzidos na primeira eleição posterior, estejam impedidos de ser reconduzidos uma vez mais em função da limitação introduzida pelo referido dispositivo.
No direito, como no esporte, as regras do jogo não podem ser mudadas enquanto ele é jogado. Por mais que acreditemos que a adoção de princípios de governança, incluída a alternância das estruturas de poder, será decisiva para que o esporte brasileiro vire o jogo e caminhe rumo ao profissionalismo, essa vitória não pode se dar ao custo do desrespeito às regras do jogo. E, neste caso, o ordenamento jurídico garante a um grupo específico de presidentes ou dirigentes máximos de entidades desportivas o direito a concorrerem a uma última recondução.
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[1] Graduado e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membros de Ambiel, Manssur, Belfiore, Gomes e Hanna Advogados.