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Nova ofensiva da Receita Federal contra jogadores e clubes em relação ao direito de imagem

Por Rafael Pandolfo e Gustavo Verch

As recentes autuações da Receita Federal sobre a cessão do direito de imagem realizada por empresas constituídas pelos atletas trouxeram um novo ingrediente ao assunto: os clubes de futebol, considerados, agora, responsáveis tributários pelo imposto exigido das pessoas físicas (jogadores de futebol).

O órgão arrecadador sempre entendeu que os valores pagos pelos clubes às pessoas jurídicas constituídas por jogadores para exploração do direito de imagem desses atletas deveriam ser tributados pelo regime aplicado às pessoas físicas (alíquota de 27,5%). Os fundamentos utilizados pela Receita e as consequências por ela impostas variaram ao longo do tempo, conforme síntese cronológica abaixo:

  • * na primeira fase, as autuações classificavam os valores recebidos a título de direito de imagem como sendo de natureza personalíssima. Partindo dessa premissa, consideravam que o direito de imagem era intransmissível e indisponível, ou seja, somente a própria pessoa poderia explorar a sua imagem;
  • * na segunda fase, a fiscalização passou a enquadrar como simulação a exploração da imagem pelas pessoas jurídicas criadas pelos atletas. Essa situação era classificada como sonegação fiscal, gerando a aplicação da multa qualificada de 150% do imposto devido, além dos riscos criminais ao fim do procedimento fiscal;
  • * na terceira e atual fase, verificou-se uma guinada na fundamentação até então adotada. As autuações atribuíram natureza salarial aos valores recebidos pela licença do direito de uso da imagem. Para “driblar” o regime instituído pelo parágrafo único do art. 87-A da Lei n° 9.615/98 (“Lei Pelé”)[1], a Receita Federal exigiu a prova da efetiva exploração da imagem e do retorno financeiro direto e compatível com o valor pago. Além disso, os lançamentos lavrados pelo Fisco elencaram os clubes como responsáveis tributários pelo IRPF reputado devido pelos atletas. As multas aplicadas foram atenuadas, incidindo a penalidade de 75% do tributo cobrado, numa aparente contradição.

Como se vê, o regime tributário aplicável à exploração econômica do direito de imagem apresenta novas controvérsias que ameaçam o desenvolvimento desse promissor mercado brasileiro. Embora as alterações promovidas no ordenamento jurídico pátrio tenham chancelado a estrutura utilizada para a formalizar a licença do direito de imagem conferindo maior segurança à exploração desse ativo, a nova ofensiva lançada pela fiscalização denota uma clara irresignação aos limites legais estabelecidos.

É importante, no que tange ao arcabouço jurídico que sustenta a estrutura adotada pelos atletas esportivos, repisar que:

  • * a Lei 12.395/11 reconheceu que a imagem do atleta poderia ser por ele cedida ou explorada, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo (introdução do artigo 87-A na Lei 9.615/98);
  • * a Lei nº 12.441/11 estabeleceu que a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) poderia ter como única atividade econômica a exploração de direitos patrimoniais de imagem, voz, nome ou marca de que seja detentor o titular da pessoa jurídica (artigo 980-A, §5º do Código Civil); e, mais recentemente,
  • * a Lei 13.155/15 limitou, quantitativamente, o valor pago pela entidade de prática desportiva ao atleta a título de cessão de direitos do uso de imagem, não podendo ultrapassar 40% da remuneração total do atleta, composta pela soma do salário e dos valores recebidos pelo direito ao uso da imagem.

Respeitadas as disposições legais, essa atividade econômica pode ser exercida de forma lícita e plena por empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI), constituídas especificamente para essa finalidade por atletas profissionais.

Nenhuma das circunstâncias inerentes às autorizações legais que disciplinam esse regime jurídico específico (artigo 980 – A, parágrafo 5º, do Código Civil, artigo 87 – A, da Lei 9615/98, art. 129 da Lei 11.169/05) podem ser utilizadas pela fiscalização como premissa para enquadramento em casos de abuso de personalidade (CC, artigo 50). Por exemplo: a existência de nenhum (ou poucos) funcionário(s) em uma empresa individual de responsabilidade limitada que tem como atividade apenas a exploração da imagem de um atleta está não apenas permitida como expressa e legalmente autorizada.

Quanto aos fundamentos específicos lançados pela nova ofensiva fiscal, alguns esclarecimentos são necessários.

Em primeiro lugar, não há a suscitada confusão da imagem com o contrato de trabalho.  Os deveres do atleta profissional, previstos no art. 35 da Lei Pelé e em contrato especial de trabalho, estão intrinsicamente relacionados à sua atividade laboral, isto é, à atividade para a qual o atleta é contratado.

No âmbito do contrato de trabalho do atleta profissional, é defeso a ele executar deveres estranhos às atividades laborais previstas no dispositivo há pouco referido.  Podemos citar como atividades estranhas as participações em eventos, gravações, publicidade de patrocinadores, entrevistas e programas de TV, rádio ou em outros tantos meios de promoção vinculados à imagem, nome, apelido e voz dos atletas.

A remuneração pelo direito de imagem representa o pagamento pelo direito ao exercício de uma prerrogativa, e não o exercício dessa prerrogativa, da mesma forma que o aluguel de um carro será devido mesmo nos dias em que o locatário não conseguir utilizá-lo. Isso assegura, por exemplo, que a imagem do jogador não seja utilizada para promoção de uma empresa que concorra com patrocinadores do clube, o que poderia render problemas financeiros e até jurídicos à entidade desportiva.

O fato é que não há que se falar em exigência de comprovação da exploração da imagem dos atletas. Sendo prerrogativa do clube, seu exercício e forma constituem um direito e não uma obrigação.

Em segundo lugar, o retorno da exploração da imagem dos jogadores por um clube de futebol ultrapassa, em muito, a matemática (simplista) do ganho direto, a exemplo dos álbuns de figurinhas.

A conta deve considerar todos os ganhos indiretos auferidos pelo clube, como o valor dos patrocínios, uma de suas principais fontes de receita. Nesses contratos, há sempre uma previsão que reserva ao patrocinador o direito de utilizar a imagem dos atletas da equipe patrocinada. E mais, possibilita a imputação de penalidades e, até mesmo, a rescisão do contrato, caso um determinado atleta prejudique o patrocinador, como no citado caso de propaganda de uma empresa concorrente.

Também podemos mencionar a importância do direito de imagem para os sócios dos clubes, que se alimentam não apenas de títulos, mas também de fatores alheios que acabam fortalecendo a identificação dos torcedores com as entidades e seus atletas. Exemplo didático foi o movimento, ainda em 2019, de associação em massa de torcedores do Vasco da Gama. Os jogadores tiveram papel fundamental nessa mobilização e ajudaram a divulgá-la nas diferentes mídias sócias. De acordo com notícia do UOL, o Vasco da Gama se tornou o time brasileiro com o maior número de sócios. Qual a consequência? O clube anunciou o acordo com 4 (quatro) novos patrocinadores que, a partir de 2020, estamparão suas marcas no manto cruzmaltino.

Outro exemplo, não menos importante, foi a recente contratação, pelo Botafogo, do atleta Keisuke Honda. Segundo dados da agremiação, em apenas uma semana, houve um aumento de 400% no número de associações. Isso não impacta apenas a arrecadação dos sócios, mas também o interesse de empresas em divulgar suas respectivas marcas e atrelá-las à imagem das equipes e seus atletas.

A análise do retorno financeiro, portanto, não pode se restringir ao ganho direto e imediato, mesmo porque a imagem dos atletas é construída ao longo de suas respectivas carreiras. Exigir que o ganho se dê no mesmo mês do pagamento confronta com a ideia de investimento e crescimento sustentável das entidades desportivas.

Por fim, com relação à atribuição de responsabilidade aos times, a justificativa utilizada pela fiscalização é de que ambos, clube e atleta, obtêm vantagens econômicas pelo pagamento de valores a título de direito de imagem, quando a natureza dessas importâncias deveria ser salarial.

Cumpre-nos esclarecer que não basta o mero interesse econômico em comum para que se possa atribuir responsabilidade solidária aos clubes, principalmente quando o fundamento utilizado decorre do art. 124, inciso I, do CTN. Tem de haver interesse em comum no fato gerador do respectivo tributo (no caso, auferimento de renda pela pessoa física). Esse elemento não é identificado quando os sujeitos se encontram em polos distintos da relação jurídica.

Ou seja, para se cogitar na atribuição de responsabilidade solidária, seria necessário que ambos, clube e atleta, estivessem no mesmo polo da relação e praticassem ato sujeito ao mesmo tributo (IRPF)

Não bastassem os pontos levantados, a atribuição de responsabilidade aos clubes contraria a orientação do Parecer Normativo Cosit nº 1/2002, que refere não haver qualquer responsabilidade da fonte pagadora relativamente ao IRPF após a entrega da declaração de ajuste anual pelo beneficiário do rendimento.

Como se verifica, a nova retórica adotada pela fiscalização federal revela-se, como as anteriores, equivocada. Tal incorreção parece decorrer tanto da irresignação contra o regime legal instituído para exploração da imagem de desportistas, quanto da dificuldade de compreensão das particularidades desse mercado.

………. 

Rafael Pandolfo é advogado, mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-membro titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (CARF), coordenador do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – RS (IBET-RS) e autor de diversos livros e obras sobre Direito Tributário e Societário.

Gustavo Verch é advogado, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

……….

[1] Art. 87-A.  O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo

Parágrafo único. Quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem.

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