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Novo tratamento jurídico da injúria racial e suas repercussões: um ganho para a luta antirracista?

Por Milton Jordão[1] e Rodrigo Daebs[2]

No dia 11 de janeiro de 2023, foi publicada a Lei nº 14.532/2023, que trouxe algumas modificações no tratamento jurídico da injúria racial, prevendo o aumento de pena, bem como formas agravantes dos crimes, alterando assim a chamada Lei Caó (Lei nº 7.716/1989) e o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940).

O enfretamento ao racismo é uma constante na sociedade brasileira, especialmente porque está muito incrustado e enraizado. As práticas racistas têm se multiplicado (ou se tornado mais e mais visíveis) e cada vez mais ganhado espaço nos noticiários e, sobretudo, nas redes sociais.

Vive-se a época da informação com a facilidade e a multiplicação dos meios de comunicação, as redes sociais têm o potencial de tornar fatos antes imperceptíveis conhecidos mundialmente, a chamada viralização.

A questão que surge é: como conter essa a chaga do racismo?

A contenção se impõe num Brasil que vive, em seus últimos anos, uma eclosão da extrema direita e seu discurso de banalização de minorias (especialmente as sexuais) e de apego à violência[3]; com constantes noticiários de atos racistas perpetrados por “pessoas comuns e que se dizem de bem[4]; a permanência dos altos índices de mortalidade da juventude preta[5]; e, por fim, sem contar as diuturnas suspeitas de criminalização do preto e da preta apenas devido a cor de sua pele, que, inclusive, levam à morte[6].

Os argumentos trazidos acima lastreiam o emprego do Direito Penal como alternativa ao combate e – quiçá – controle do racismo no Brasil. Naturalmente, o emprego do racionalismo levará à certeza de que isso não ocorrerá, necessariamente[7]. Em nosso país, há um racismo estruturado, em face disso, se reclamará uma luta incessante para diminuir a níveis mínimos. Apesar disso, não se poderá abrir mão do emprego da reprimenda estatal, no caso, através do poder punitivo, nesse exato momento, apesar da certeza de que as chagas não serão curadas[8].

Por sua vez, sabe-se que a norma criminal, de per si, não tem o condão de cessar atos de cunho discriminatório racial, sobretudo quando o Poder Judiciário pátrio aparenta não ter a real compreensão do racismo em sua forma estrutural e as suas diversas maneiras de manifestação. Isso impede a devida responsabilização dos infratores e estimula a perpetuação do sentimento de impunidade. A bem da verdade, os papéis findam invertidos, a sensação de que a vítima não é acolhida pelo Estado.

Nessa esteira, a Lei nº 14.532/2023, como forma de evitar a proteção deficitária, buscou tratar com mais rigor jurídico a matéria, consoante destacamos abaixo:

Quanto às modificações na Lei nº 7.716/1989, destacamos que houve a adição de alguns dispositivos e alterações de outros, vejamos:

– Previsão do crime de injúria racial e a sua forma majorada pelo concurso de pessoas (Art. 2-A)

– Alteração da redação do §2º do art. 20 para acrescer outros meios de cometimento do delito como qualificadora (publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza)

– Adição de outra qualificadora prevista no art. 20, quando o delito for praticado no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público (art. 20, § 2º-A), a reprimenda contida no tipo é de de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, bem como a proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

– Adição de nova conduta discriminatória: sem prejuízo da pena correspondente à violência, incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas (art. 20, § 2º-B).

– Diminuta modificação da redação do art. 20, § 3.

– Adição da agravante do denominado “racismo recreativo”, quando a prática de quaisquer crimes desta Lei for cometido em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação (Art. 20-A, caput).

– Acréscimo da agravante nos delitos do art. arts. 2º-A e 20, quando o autor do delito for funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. (Art. 20-B, caput).

– Adição de orientação hermenêutica na aplicação da Lei nº 14.532/2023, para que o juiz ao interpretar o dispositivo legal considere como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. (Art. 20-C, caput).

– Acréscimo da obrigatoriedade de em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a vítima dos crimes de racismo deverá estar acompanhada de advogado ou defensor público. Art. 20-D, caput).

Já em relação as alterações havidas no Decreto-Lei nº 2.848/1940 (Código Penal), estas foram apenas duas.

Alterou-se a redação do §3º do art. 140 do Código Penal, passando a vigorar com a seguinte descrição:  se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência. No tocante à pena, a alteração foi no uso da vírgula.

Tais novidades legislativas vêm para fortalecer a luta antirracista e o posicionamento já tomado pelo Supremo Tribunal Federal quanto a sua imprescritibilidade, reconhecida no julgamento do HC 154.248, onde ali concluiu-se que a injúria preconceito/racial do artigo 140, § 3º, do CP era espécie do racismo e, por sua vez, imprescritível e inafiançavel, não importando se o tipo penal se encontrava na Lei 7.716/89 ou no Código Penal.

A modificação legal conseguiu compreender a necessidade de se contemplar realidade nova, não mais compreendida nos limites do tipo penal anterior. Assim como se procurou incrementar a reprimenda, em virtude da sua maior lesividade.

Algumas dessas adições/alterações chamaram atenção, festejamos a qualificadora da suspensão da frequência por 3 (três) anos, quando o delito for praticado em contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público (art. 20, § 2º-A), pois esta forma qualificada acaba por solucionar um problema que existia no âmbito do futebol, quando da responsabilização do autor do crime de racismo, já que com a previsão da suspensão como reprimenda pela prática do delito, inclusive como medida cautelar, aquele que cometer tal fato ultrajante ficará afastado do ambiente esportivo, o que não era possível antes.

Medida comemorada em todo ambiente desportivo, mais ainda em relação ao futebol, onde infelizmente estas práticas acontecem com certa frequência, conforme comprova o estudo realizado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol[9].

Portanto, percebe-se que a nova legislação contra o racismo veio em boa hora e certamente contribuirá para responsabilização dos autores e a diminuir a sensação de impunidade, apesar de que precisamos mais do que normas penais, e sim políticas afirmativas para a conscientização dos efeitos deletérios do racismo na sociedade, sobretudo na vida das vítimas, precisamos virar essa página e excluir quaisquer formas de discriminação.

O desafio está lançado, que não nos escondamos por detrás da Lei, como tábua de salvação, mas, inspirados na poesia do Olodum, uma mudança efetiva de postura e vontade:

Veja o mundo imerso em ninharia
Fome, desemprego e ambição
Na base de tudo tem coisa do racismo
Que faz da violência uma tradição

Hoje estou na fonte dos desejos
Pra fazer valer um bom viver
Clamo a tolerância
Clamo a paz harmonia
Para um mundo florescer

(Manifesto da Paz)

Crédito imagem: CBF

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Advogado. Sócio da Jordão & Possídio Sociedade de Advogados. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Vice-presidente da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivo, Lotéricos e Entretenimento da OAB Nacional. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Membro do Instituto de Advogados Brasileiros (IAB). Presidente do STJD do Judô. Ex-Procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

[2] Advogado. Associado da Jordão & Possídio Sociedade de Advogados. Pós-graduado em Ciências Criminais pelo CERS e Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional.

[3] Muito oportuna a análise de Michael Löwy: “O que é comparável na extrema-direita francesa e brasileira são dois temas de agitação sociocultural do conservadorismo mais reacionário: I. A ideologia repressiva, o culto da violência policial, o chamado a restabelecer a pena de morte: é o caso na Europa da extrema-direita e no Brasil da “bancada da bala”, fortemente representada no Congresso. II. A intolerância com as minorias sexuais, em particular os homossexuais. É um tema agitado, com certo sucesso, por setores religiosos, com referência católica (Opus Dei, Civitas etc.) na França e evangélica neopentecostal no Brasil.”. Disponível em: < SciELO – Brasil – Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil* Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil* >. Acessado em 18 abr 2023.

[4] Vide recente fato envolvendo uma ex-atleta de vôlei de praia no Rio de Janeiro. Disponível em: < Ex-jogadora de vôlei que chicoteou entregador é atacada em suas redes sociais: ‘racista’ | Casos de Polícia | extra (globo.com) >. Acessado em 18 abr 2023.

[5] Os índices são antigos e datam desde a década de 80, todavia, convém trazer preciso excerto do Atltas da Violência 2021: “Em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre não negras. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras. Ao analisarmos os dados da última década, vemos que a redução dos homicídios ocorrida no país esteve muito mais concentrada entre a população não negra do que entre a negra. Entre 2009 e 2019, as taxas de homicídio apresentaram uma diminuição de 20,3%, sendo que entre negros houve uma redução de 15,5% e entre não negros de 30,5%, ou seja, a diminuição das taxas homicídio de não negros é 50% superior à correspondente à população negra. Se considerarmos ainda os números absolutos do mesmo período, houve um aumento de 1,6% dos homicídios entre negros entre 2009 e 2019, passando de 33.929 vítimas para 34.446 no último ano, e entre não negros, por outro lado, houve redução de 33% no número absoluto de vítimas, passando de 15.249 mortos em 2009 para 10.217 em 2019.”. Disponível em: < 5141-atlasdaviolencia2021completo.pdf (ipea.gov.br)> Acessado em 18 abr 2023.

[6] Em oportuno texto, o Professor Wilson Gomes, resume muito bem um desses casos terríveis que temos que conviver: “Esta semana mais um negro pobre foi morto. Chamava-se João Alberto Silveira Freitas. Não foi morto por bandidos na periferia, não foi morto em confronto com a polícia depois de um crime, não foi morto por doença ou fome, não foi morto por acidente ou acaso, não foi morto em um lugar ermo e em circunstâncias desconhecidas. Não foi morto de nenhuma das formas tradicionais com que os negros costumam ser mortos neste país de desigualdade e preconceito. Não. Foi morto a pancadas. Em um supermercado. Sem que estivesse cometendo crime algum. Na frente das câmeras. Foi um assassinato-show, sem pudor, disfarce, não mais protegido pela noite e pelo segredo como se costumava fazer. A mensagem foi de que não se precisa mais disso para matar, na porrada, um negro pobre e da periferia. A monstruosidade perdeu a vergonha, o recato.” Disponível em: <A brutalidade que nos governa e o racismo que ela comporta (uol.com.br)>. Acessado em 18 abr 2023.

[7] Nos ensinam Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista que “o poder punitivo criminaliza selecionando: a) as pessoas que, em regra, se enquadram nos estereótipos criminais e que, por isso, se tornam vulneráveis, por serem somente capazes de obras ilícitas toscas e por assumi-las desempenhando papéis induzidos pelos valores negativos associados ao estereótipo (criminalização conforme ao estereótipo); b) com muito menos frequência, as pessoas que, sem se enquadrarem no estereótipo, tenham atuado com brutalidade tão singular que se tornaram vulneráveis (autores de homicídios intrafamiliares, de roubos neuróticos etc.) (criminalização por comportamento grotesco ou trágico); c) alguém que, de modo muito excepcional, ao encontrar-se em uma posição que o tornara praticamente invulnerável ao poder punitivo, levou a pior parte em uma luta de poder hegemônico e sofreu por isso uma ruptura na vulnerabilidade (criminalização devida à falta de cobertura). O sistema penal opera, pois, em forma de filtro” para acabar selecionando tais pessoas.”. (Direito Penal Brasileiro – I, Ed. Revan: 2003, 2 edição, p. 49).

[8] Quando se pensa na consequência jurídica do crime, a pena, impossível não se rememorar preciosa lição da Professora Maria Lúcia Karam, a saber: o efeito dissuasório nunca se comprovou. Ao contrário, é clara a sinalização de que a aparição de crimes não se relaciona com o número de pessoas punidas ou com a intensidade das penas impostas, bastando pensar um pouco para verificar, em relação a nós mesmos, que não é a ameaça da pena que conduz à abstenção da prática de crimes, como não é nenhuma espécie de ameaça o que nos faz deixar ou não de realizar qualquer comportamento que apareça, para nós ou para terceiros, como um comportamento negativo. (Pela Abolição do Sistema Penal in Curso Livre de Abolicionismo Penal, Ed. Revan, 2004, p. 79).

[9] https://ge.globo.com/rj/futebol/noticia/2022/08/24/casos-de-racismo-no-futebol-brasileiro-em-2022-igualam-numero-de-todo-o-ano-passado.ghtml

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