O mecanismo de solidariedade é mais um instrumento tipicamente desportivo, instituído no mundo do desporto organizacional, mais precisamente se originando dos estudos realizados por juristas desportivos convidados pela FIFA que insculpiram tal instrumento em seu Estatuto e Regulamento de Transferências de Jogadores para ser desenvolvido nas transferências internacionais de atletas.
Tal mecanismo corresponde ao pagamento de uma percentagem de cinco por cento (5%) sobre o valor quitado na cláusula indenizatória desportiva pela entidade de prática desportiva contratante à empregadora desportiva que está perdendo o atleta pelo rompimento contratual, devendo o percentual ser distribuído entre todas as equipes formadoras pelas quais o jogador teve passagem de formação atlética.
Na quase extinta Lei Pelé, o atleta profissional só era assim considerado se tivesse vínculo com clube registrado devidamente na entidade reguladora da modalidade, e só atletas profissionais poderiam se enquadrar nas premissas do mecanismo de solidariedade.
Ocorre que, com o advento da nova Lei Geral do Esporte, o atleta profissional passar a ser aquele que se dedique à atividade desportiva como forma de, através desta, ter sua principal renda, senão, vejamos o PLS 1825/2022, relativo à dita lei, já em vias de ser sancionado:
Art. 71. A profissão de atleta é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes contidas na legislação vigente, no respectivo contrato de trabalho ou em acordos ou convenções coletivas.
Parágrafo único. Considera-se atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedica à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tem nessa atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como recebe sua remuneração.
Destarte, o PLS também define, a partir da figura do atleta profissional, o status da organização que o abriga em seus quadros, in verbis:
Art. 82. Considera-se como voltada à prática esportiva profissional a organização esportiva, independentemente de sua natureza jurídica, que mantenha atletas profissionais em seus quadros.
Portanto, a entidade que tenha em seus quadros atletas profissionais passará ser considerada profissional conforme o novo texto legal.
Analisando a questão sob o prisma dos esportes de combate, um lutador profissional poderia ser facilmente enquadrado nesses quesitos, já que muitas vezes tem a luta como sua principal fonte de renda.
A questão, nesse caso, é a seguinte: se o atleta da luta pode ser considerado profissional pelo acima exposto e a entidade pela qual é contratado também, como ficaria a questão do mecanismo de solidariedade nesse caso? Será que a nova lei trouxe novidades?
Cumpre então analisar o novo texto legal, mais precisamente o artigo 101:
Subseção II
Do Mecanismo de Solidariedade na Formação Esportiva
Art. 101. Sempre que ocorrer transferência nacional, definitiva ou temporária, de atleta profissional, até 5% (cinco por cento) do valor pago pela nova organização esportiva serão obrigatoriamente distribuídos entre as organizações esportivas que contribuíram para a formação do atleta, na proporção de:
I – 1% (um por cento) para cada ano de formação do atleta, dos 14 (quatorze) aos 17 (dezessete) anos de idade, inclusive; e
II – 0,5% (cinco décimos por cento) para cada ano de formação, dos 18 (dezoito) aos 19 (dezenove) anos de idade, inclusive.
§ 1º Caberá à organização esportiva cessionária do atleta reter do valor a ser pago à organização esportiva cedente 5% (cinco por cento) do valor acordado para a transferência e distribuí-los às organizações esportivas que contribuíram para a formação do atleta.
§ 2º Como exceção à regra estabelecida no § 1º deste artigo, caso o atleta se desvincule da organização esportiva de forma unilateral, mediante pagamento da cláusula indenizatória esportiva prevista no inciso I do caput do art. 85 desta Lei, caberá à organização esportiva que recebeu a cláusula indenizatória esportiva distribuir 5% (cinco por cento) de tal montante às organizações esportivas responsáveis pela formação do atleta.
§ 3º O percentual devido às organizações esportivas formadoras do atleta deverá ser calculado sempre de acordo com certidão a ser fornecida pela organização esportiva que regula o esporte nacionalmente, e os valores deverão ser distribuídos proporcionalmente em até 30 (trinta) dias contados da efetiva transferência, cabendo-lhe exigir o cumprimento do que dispõe este parágrafo.
(grifo meu)
Com base no exposto, avaliemos então o seguinte exemplo: atleta que luta, por uma determinada academia, eventos nacionais “menores” pra iniciar sua carreira vem a ser convidado a treinar em outra academia e seja contratado pelo UFC, digamos. Nesse caso, a meu sentir, caberia parte do valor da bolsa que o atleta pagaria à sua nova academia para a academia “formadora”, uma vez que a inexistência de contrato de trabalho não é mais empecilho, salvo melhor juízo.
Lógico que o texto legal ora analisado não foi confeccionado tendo em vista os esportes de combate (muito embora vários artigos sejam plenamente aplicáveis às modalidades de luta), mas seria interessante, como já discorri antes, algum tipo de proteção para o evento formador nesse sentido, até para estimular seu fomento.
Talvez o maior empecilho seja a figura do atleta profissional da luta como um prestador de serviços pura e simplesmente. O modelo americano exportado para o Brasil não permite que avancemos de forma a dar um melhor tratamento aos atletas da luta. Precisamos mudar essa visão.
Agradeço ao querido amigo Nicholas Bocci, gênio do direito e-esportivo, pela sugestão de tema!
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Referências
DANI, Marcos Ulhoa. Transferências e Registros de Atletas Profissionais de Futebol: Responsabilidades e Direitos. 2ª. ed. São Paulo: LTr, 2019.
RAMOS, Rafael Teixeira. Curso de Direito do Trabalho Desportivo: As Relações Especiais de Trabalho do Esporte. São Paulo: Juspodivm, 2022.