Por Elthon Costa e Rafael Ramos
O boxe é frequentemente considerado um dos esportes mais antigos do mundo, mas não foi até as últimas décadas que o boxe feminino se tornou um esporte oficialmente sancionado nos Estados Unidos e no exterior.
Quando Katie Taylor e Amanda Serrano entraram no ringue em 30 de abril de 2022[1], marcaram um momento decisivo na história do boxe feminino. Oficialmente, os quatro títulos de 135 libras de Taylor, conquistados ao longo de uma carreira profissional brilhante e imaculada de seis anos, foram colocados em jogo. Extraoficialmente, isso sinalizou que o boxe feminino havia finalmente chegado. Uma luta de boxe feminino nunca fora a atração principal do Madison Square Garden nos lendários 140 anos de história da arena. Quando os ingressos foram colocados à disposição do público em fevereiro de 2022, foi a segunda maior pré-venda de boxe que o estádio já teve.
Taylor, 35, e Serrano, 33, circulavam uma à outra há anos. Elas quase lutaram em 2020, nos dias mais desafiadores da pandemia. Elas são duas das lutadoras mais bem-sucedidas do boxe feminino, as três primeiras na lista pound-for-pound (classificação usada em esportes de combate de quem são os melhores lutadores em relação ao seu peso) da Sports Illustrated, e a vitória de Taylor não apenas afirmou seu lugar no topo, mas aumentou a discussão para ser chamada de maior boxeadora de todos os tempos.
A despeito do sucesso da luta, ao longo da história da chamada nobre arte, a instituição do boxe construiu séculos de espantalhos e desculpas científicas ainda mais idiotas para excluir as mulheres. As mulheres já foram obrigadas a usar placas de peito de alumínio para boxear e foram convidadas a usar saias no ringue em 2011[2]. A WBC, órgão sancionador mais reconhecido do esporte, sustenta até hoje que “a resistência das mulheres provou ser menor que a dos homens[3]” (algo refutado pelos resultados das mulheres em ultramaratonas), e que as mulheres são mais suscetíveis a concussões e, como tal, não podem lutar em rounds de três minutos. Nenhuma palavra sobre o motivo pelo qual os homens não precisam de tais proteções, no entanto.
Por sua vez, a duração dos rounds tem sido usada há muito tempo como uma desculpa por fãs sexistas para descartar o boxe feminino como sendo inerentemente inferior e uma muleta para as pessoas não pagarem as mulheres de forma justa.
Nos EUA, o “Title IX of the 1972 Education Amendments to the 1964 Civil Rights Act[4]” determina que “nenhuma pessoa nos Estados Unidos deve, com base no sexo, ser excluída da participação, ter seus benefícios negados ou ser submetida a discriminação sob qualquer tipo de educação, programa ou atividade que recebe assistência financeira federal”. Em suma, a lei garante acesso igual para homens e mulheres em programas e atividades educacionais financiados pelo governo federal, incluindo esportes.
Com a aprovação do Title IX, uma lei dos anos 70, e a dedicação de organizações como a Women’s Sports Foundation, houve um aumento dramático na participação das mulheres nos esportes nos EUA. Por exemplo, nos esportes da NCAA, a participação das mulheres aumentou seis vezes desde que a lei foi promulgada e, no ensino médio, aumentou dez vezes.
Este ano a lei completa 50 anos, e a participação em esportes tem sido atribuída ao aumento da autoestima e desempenho acadêmico, e à diminuição das taxas de gravidez e desistência de mulheres e meninas.
Em Londres, 2012, pela primeira vez na história, todos os países participantes dos Jogos Olímpicos enviaram atletas do sexo feminino para competir. Certas delegações, como os Estados Unidos e a Rússia, levaram mais atletas olímpicos femininos do que masculinos. Ademais, Londres 2012 foi a Olimpíada inaugural do boxe feminino – o que significa que as mulheres, finalmente, competem em todos os esportes olímpicos.
No Brasil, a mulher encontrou resistência legal à sua entrada nos esportes de combate já desde a metade do século XX. Em 1941, foi promulgado o Decreto-lei nº 3.199, que estabelecia as Bases de Organização dos Desportos em todo o país. Preceituava o decreto, em seu artigo 54, o seguinte:
“Às mulheres não se permitirá a prática dos esportes incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo para este efeito, o Conselho Nacional dos Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país…”.
Mais tarde, em 1965, seguindo o regramento contido no artigo supracitado, o CND baixou, através da Deliberação nº 7, instruções às entidades desportivas do país sobre a prática de Esporte pelas mulheres, senão vejamos:
“… Nº 1 – Às mulheres se permitirá a prática de desportos na forma, modalidade e condições estabelecidas pelas entidades internacionais dirigentes de cada desporto, inclusive em competições, observado o disposto na presente deliberação”.
“Nº 2 – Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo, halterofilismo e baseball…”.
Hoje revogadas, as disposições legais acima transcritas retratam um tempo no qual o preconceito alijava as mulheres da prática desportiva sem razão plausível alguma. Observar as mulheres participando de um esporte de colisão tão exaustivo quanto o boxe deve realmente transmitir a mensagem de que as mulheres podem se destacar em qualquer atividade atlética da mesma forma que os homens.
As mulheres nunca foram incapazes de se tornarem superstars no boxe – elas simplesmente nunca tiveram a chance. Agora têm.
Crédito imagem: COB
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Elthon Costa é advogado trabalhista e desportivo. É Sócio-Diretor Trabalhista e Desportivo no Todde Advogados e Membro da Diretoria e Pesquisador do Grupo de Estudos e Desporto São Judas (GEDD-SJ) e da Comissão de Direito Desportivo da OAB/DF. @elthoncosta
REFERÊNCIAS
JENNINGS, L. A. She’s a Knockout!: A History of Women in Fighting Sports. EUA: Rowman & Littlefield Publishers, 2014. 222 p. ISBN 9781442236431.
[1] FUCS, Daniel. Taylor-Serrano foi disputa para ficar na história. Globo, Site, 01 mai. 2022. Disponível em: https://ge.globo.com/boxe/blogs/blog-do-daniel-fucs/post/2022/05/01/taylor-serrano.ghtml. Acesso em: 6 mai. 2022.
[2] [2]SANDLER, Ariel. An International Boxing Federation Wants Women To Wear Skirts In The Ring. Business Insider, Site, 27 out. 2011. Disponível em: https://www.businessinsider.com/boxing-women-aiba-wear-skirts-2011-10. Acesso em: 6 mai. 2022.
[3] NEWLAND, Christina. The Biggest Fight in Women’s Boxing Is Over a Minute. The Ringer, Site, 11 jul. 2018. Disponível em: https://www.theringer.com/2018/7/11/17550554/women-boxing-wbc-round-length-restriction. Acesso em: 6 mai. 2022.
[4] EUA. Title IX. In: U.S. Department of Education, Site, ago. 2021. Disponível em: https://www2.ed.gov/about/offices/list/ocr/docs/tix_dis.html. Acesso em: 05 mai. 2022.