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O caminho para Shagri-La e as turbulências próprias de Anarkilópolis

“Até então, o que encontrara em Shangri-La tinha-se revelado tudo quanto desejara e, certamente, mais do que se poderia esperar” (James Hilton in Horizonte perdido)

Muitas vezes em nossa vida, após períodos de intensos stress e pelejas, buscamos refúgios de paz para poder recuperar as energias despendidas e seguir adiante. O momento vivido por todos nós é deveras adequado para sonhar com uma Shangri-La[1], nos mais diversos campos da vida humana, que tem sido marcada por incertezas e um turvo futuro à frente.

No campo do Mundo Desportivo[2] também se comparte dos mesmos sentimentos, como se pode colher dos inúmeros eventos virtuais, seja no Brasil ou fora dele, bem como textos produzidos, que perquirem e avaliam cenários futuros para retomada do mercado e competições. A busca de uma solução dos problemas que os alcançam urge, reencontrando a estabilidade necessária para se prosperar.

Um dos aspectos que tem marcado essa busca de alternativas no Brasil, em especial, tem sido a modificação no cenário legislativo jusdesportivo. Recentemente, a edição da Medida Provisória 984 provou verdadeira tormenta em nossa realidade, agindo como verdadeiro catalisador de mudanças para boa parcela do Mundo Desportivo ligado do Futebol. Uns acham-na a solução ideal e outros um grande risco de se incrementar os abismos já existentes.

Não pretendo aqui incursionar na principal discussão desta Medida Provisória (MP), a respeito da outorga ao mandante de jogos o direito exclusivo de negociar o direito de transmissão destes[3]. Todavia, trago uma provocação, que julgo necessária, para o porvir, sobretudo ante o avanço no Congresso Nacional desta MP, que poderá resultar em modificação na Lei Geral do Desportivo – e mudança significativa, friso.

 O Senhor Presidente, na MP 984, ao modificar o § 1°, do artigo 42, da Lei n° 9.615/98, afastou a obrigatoriedade do repasse do direito de arena (5% do valor do contrato firmado com a empresa que transmitirá os jogos) para as entidades sindicais[4]. Portanto, leitura comparativa do texto original e o alterado não revelam substancial mudança.

Com isso, surgiram vozes aqui e acolá debatendo se este parágrafo único (propositalmente gizado para chamar sua atenção) teria oportunizado que o direito de arena (idem) fosse dividido entre os atletas da equipe mandante e visitante, afinal, dizem os defensores de tal tese que o dispositivo reza que a partilha é entre “os atletas profissionais participantes do espetáculo”.

Norberto Bobbio citando Perassi nos diz que as normas, que entram para constituir um ordenamento, não ficam isoladas, mas tornam-se parte de um sistema, uma vez que certos princípios agem como ligações, pelas quais as normas são mantidas juntas de maneira a constituir um bloco sistemático[5]. Ou seja, as normas que integram determinado sistema devem ser interpretadas de forma sistemática, inclusive, como ressalta o aludido professor italiano, objetiva com isso esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma deficiente recorrendo ao chamado ‘espírito do sistema’, mesmo indo contra aquilo que resultaria  de uma interpretação meramente literal[6].

Nessa perspectiva, então, devemos nos ater ao significado de direito de arena e seu alcance, para que possamos analisar o artigo por completo, vide que dentro da Lei Geral do Desporto ele é um microssistema jurídico. Consiste, pois, tal instituto em direito que tem o seu titular  – as entidades de prática desportiva –  de negociar os direitos de transmissão de partidas, sendo garantido o percebimento de porcentagem (5%) por parte dos atletas que mantém consigo relação jurídica-trabalhista[7].

Assim, portanto, tem-se claro e evidente que se o caput do artigo 42 trata de destinar o direito de arena à agremiação de futebol, os destinatários do que se estende ao atleta será exclusivo daqueles com que mantém contrato de trabalho. E mais, dentre estes, somente os que atuarem durante a partida farão jus ao direito de arena.

Por fim, em relação à sua natureza, tem-se que “deverá, obrigatoriamente, ser entendido como parcela de caráter civil, indenizatória[8]; mas, que terá como juízo natural a Justiça do Trabalho que, costumeiramente, “analisa questões que gravitam em torno da relação de trabalho, mesmo de cunho indenizatório[9].

Feitos os necessários esclarecimentos, tem-se evidente que o parágrafo primeiro do artigo não poderá ser interpretado para além dos limites do direito de arena, conforme conceituado. Excluindo-se, por dedução, que qualquer porcentagem não será dividida com os atletas do clube visitante. Além disso, força convir que este terá a oportunidade de fazer jus a este direito quando a partida ocorrer nos domínios do seu empregador.

Não obstante isso, surgem – digo ressurge – uma grita por conferir direito de arena a árbitros e outras personagens (em especial o técnico de futebol).

Estamos diante de duas questões diversas. Analisemos a mais simples: o caso dos técnicos e membros de comissões técnicas (massagistas, médicos, etc). Para eles a lógica jurídica é a idêntica à aplicável ao atleta, somente será necessário que o legislador, expressamente, os inclua no rol dos que têm direito à porcentagem dos valores pactuados pelos clubes pela transmissão de jogos.

No que concerne aos árbitros, estes, embora fosse uma medida de inteira justiça, não podem ter direito de arena. Primeiro, porque não são empregados dos clubes e nem poderiam ser, por imperativo ético. Estes, prestam, por vezes, serviços aos organizadores de eventos esportivos (confederações, federações, ligas, clubes, etc.).

Então, o que se poderia fazer? A única saída é criar um instituto específico para estes, ou ir mais além de reformar o direito de arena, alterando o seu conceito jurídico, para incluir os árbitros.

E aqui é onde, atualmente, nos encontramos na Anarkilópolis de Raul Seixas[10], uma terra em que “cada um manda no seu nariz”, mas que se encontrava com “uns caras mal encarados armados até os dentes”.

A saída de Anarkilópolis para a sonhada Sangri-La passa por enfrentar “os bandidos que haviam dominado o lugar e mantinham todos como reféns”. Ou seja, precisamos nos arriscar a encontrar a melhor composição deste cenário, que significa dizer, reunir as partes e dialogar para encontrar a saída. E vencer os inimigos comuns é o ideal para se restituir ao que foi tomado,  direito de cada agir como bem quer e deseja, sem implicar em vivermos numa desigualdade ou em injustiça.

Fato é que o modelo atual é injusto com árbitros, técnicos e membros de comissão técnicas, que, nos dias atuais, têm sua imagem integrada nas transmissões, sendo peças importantes também em todo o contexto.

É preciso mudar! Não será nada fácil mexer nos costume já deveras antigos dos atletas de receber, exclusivamente, o direito de arena ou mesmo reduzi-lo para acomodar estes novos personagens; ou, nem mesmo será fácil discutir um eventual aumento  do porcentual dos direitos de transmissão; ou, ainda, incluir as entidades de administração do esporte como aquele que deveria pagar os árbitros.

São muitas variáveis e que modificam o cenário atual. O momento é propício, sobretudo projetando o novo futuro. E, quem sabe, possam estes players mostrar a Raul que “entrar pra história é com vocês”.

Ninguém disse que é fácil o caminho para Shagri-La, porém, ele existe, basta querer chegar lá.

……….

[1] Shangri-La é uma cidade nas montanhas tibetanas, fruto da criação de James Hilton, no romance Horizonte Perdido, que é descrita como lugar perfeito, onde se encontra a paz e felicidade.

[2] Leia-se como o desporto de alto rendimento e sua comunidade (federações, clubes, atletas, intermediários, stakeholders, etc.).

[3] Tive oportunidade de encetar este debate na coluna da semana passada.

[4] Eis o novo texto: § 1o Serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo de que trata o caput, cinco por cento da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.

[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, 10a ed., Brasília: Ed. UNB, 1999, p. 75.

[6] _____. Ob cit, p. 76.

[7] Ver: BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Direito Desportivo, 2ª ed., Belo Horizonte: Casa da Educação Física, 2018, p. 97; POSSÍDIO, Cristiano Augusto Rodrigues. Direito Desportivo Trabalhista – Contrato Especial de Trabalho Desportivo, Curitiba: Ed. Juruá, 2019, p. 128.

[8] _____. Ob cit, p. 111.

[9] _____. Ob cit., p. 112.

[10] Esta música foi feita por Raul Seixas, ainda na década de oitenta, mas não saiu a tempo para integrar o álbum Metrô 743, sendo descoberta, por acaso, em 2002, pela gravadora Som Livre. Inclusive, ela usa o mesmo refrão do sucesso “Cowboy Fora da Lei”.

……….

Crédito imagem: Pixabay.

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