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O caso Bosman e os mecanismos substitutivos ao passe (parte I)

A Lei Pelé (Lei 9.615/98), apesar de ainda formalmente em vigor, operava como a Lei Geral do Esporte brasileiro até a edição da Lei 14.597/2023. À época da sua edição, ficou popularmente conhecida como a “Lei do fim do Passe”, precisamente por ter abolido, entre nós, o velho instituto do passe. Mas qual teria sido o pano de fundo para a referida mudança? O não menos famoso Caso Bosman.

O atleta belga Jean-Marc Bosman protagonizou o conflito que mudaria definitivamente o modo de ser das transferências no futebol em nível mundial. O futebol jamais seria o mesmo. Bosman era atleta do RFC Liége, que então atuava pela Jupiler League (primeira divisão belga).  Ao final da temporada 1989-1990, o clube lhe ofereceu uma proposta de renovação de contrato com redução salarial de mais de 50%. O atleta, irresignado com a situação, não aceitou a oferta. A partir daqui a história seria, então, reescrita.

À época, vigorava na legislação da FIFA o instituto do passe, o qual, na prática, mantinha os jogadores vinculados aos clubes mesmo após o término de seus contratos. Eventual transferência dependeria do pagamento do valor do passe, que era o montante fixado pelo último clube empregador. O passe foi regulado desta forma com a finalidade de remunerar ou compensar os clubes formadores pelo montante investido nas categorias de base. No Brasil, neste mesmo momento histórico, vigorava a Lei 6.354/76, que se ocupava de regular as relações de trabalho do atleta profissional do futebol. O instituto do passe era definido no art. 13. Mesmo após o término do contrato, uma eventual transferência só seria concretizada caso houvesse o pagamento do valor estipulado pelo clube cedente (a velha “compra do passe”), com o atleta tendo direito ao recebimento de 15% da transação. O atleta só ganhava passe livre aos 32 anos e após 10 anos de serviços ininterruptos prestados ao último clube.

Se, de um lado, o passe tinha sua razão de ser, pois era necessário compensar os clubes formadores (até para que houvesse incentivos para continuar investindo na formação de atletas), por outro, funcionava como instrumento que “escravizava” os atletas, os quais não gozavam de completa liberdade laboral mesmo após o fim de seus contratos. Como se não bastasse, os clubes, sabedores da existência do vínculo quase indefinido, pressionavam e chantageavam os atletas ao final de seus contratos por renovações muitas vezes em condições desfavoráveis, sob pena de serem colocados na “geladeira” e fixados valores impagáveis por seu passe.

Foi exatamente a situação experimentada por Bosman. O clube belga, além de oferecer uma proposta de renovação com substancial redução de vencimentos, fixou o valor do passe em montante considerado alto para um jogador relativamente desconhecido. Como não aceitou a proposta, Bosman negociou uma transferência para o USL Dunkerque, clube da segunda divisão francesa. Ocorre que a agremiação francesa não aceitou pagar a cláusula de indenização exigida pelo clube belga, fazendo com que o atleta tivesse a emissão de seu atestado liberatório negado e ficasse, a partir de então, em verdadeiro limbo jurídico e trabalhista.

O jogador judicializou a questão junto à Justiça belga em 1990. O conflito também envolveu a Federação Belga e a UEFA. Num primeiro momento, Bosman teve ganho de causa e se transferiu ao Saint-Quentin, da terceira divisão francesa, sem que houvesse necessidade de indenizar o Liège, O clube recorreu às Cortes Superiores, fazendo que com o atleta não mais pudesse atuar enquanto o apelo estivesse pendente de julgamento. Nesse ínterim, o Estado francês lhe paga uma espécie de seguro-desemprego. Bosman chegou a atuar em campeonatos amadores e por outros clubes de menor expressão. Somente em 1995, o Supremo Tribunal da Bélgica finalmente rejeitou todos os apelos do Liège, da Federação Belga e da UEFA. O caso, então, foi levado ao Tribunal da União Europeia. A defesa de Bosman invocava o Tratado de Roma (1957), que garantia a livre circulação de pessoas, trabalhadores, bens e serviços nos países comunitários. O atleta pretendia receber o mesmo tratamento de um trabalhador comum. A partir desse momento, o tema deixa de ser local e passa ser do futebol europeu como um todo.

Em dezembro de 1995, a chamada sentença Bosman deu ganho final de causa ao atleta e catalisou as profundas mudanças que seriam implementadas a nível mundial. A essa altura, o atleta, com mais de 30 anos, acabou se aposentando no ano seguinte. Há registros que Bosman teria enfrentando problemas financeiros, de depressão e alcoolismo. O fato é que, mesmo de forma inconsciente, Bosman acabou sacrificando sua própria carreira em nome de um bem maior, uma vez que os jogadores deixam, então, de ser negociados como se fossem mercadorias ou propriedades dos clubes.

Diante da lei Bosman, houve o início de um amplo processo de negociação entre a UEFA e a União Europeia para a imperiosa adequação das normas esportivas aos direitos fundamentais dos cidadãos comunitários, pois a cobrança de qualquer valor a título de transferência após a expiração dos contratos tornava-se ilegal a partir de então. Após o término da avença, o atleta tornava-se um agente livre (free agent) e nos últimos 6 meses de vigência já teria a possibilidade de assinar um pré-contrato com outro clube. No mais, estava sedimentado o caminho para a supremacia dos clubes europeus a nível mundial, pois a contratação de atletas comunitários não contaria para efeito da limitada quota de atletas estrangeiros de cada equipe. A FIFA, naturalmente, também precisou alterar seus regulamentos para adequá-los às novas exigências.  A Lei Pelé, três anos após, veio a reboque deste movimento.

Mas não pense que a abolição do passe gerou um vácuo normativo e econômico. Como a negociação de jogadores durante a vigência de seus contratos permaneceu constituindo uma das principais fontes de renda para os clubes e a recompensa aos clubes formadores não poderia ser esquecida, institutos substitutivos ao passe como os “direitos federativos”, direitos econômicos”, “mecanismo de solidariedade”, “indenização de treinamento” passam a ser incorporados nos Regulamentos da FIFA e na legislação brasileira. A dinâmica das negociações contratuais e o planejamento das equipes também mudou.

Sobre tais câmbios trataremos nas próximas colunas. Até lá!

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