No final da década de 1930, quando a guerra começa a atingir a Espanha, a Áustria, a Polônia e a então Tchecoslováquia, o escritor Stefan Zweig decide abandonar o continente europeu e fixar residência no Brasil, o que ocorreu em 1941.
No livro “Brasil, um país do futuro”, o romancista austríaco relata a dificuldade de se conseguir, em nosso planeta, uma convivência pacífica entre as pessoas, independentemente da diversidade das raças, classes, cores, religiões e convicções. Contudo, o próprio autor conclui que apesar de todos os problemas históricos através dos quais o Brasil enfrentou, foi nesta terra que a melhor solução foi encontrada, digna não apenas de atenção, mas de admiração do mundo.
De acordo com as palavras de Zweig, pela estrutura etnológica, caso tivesse acompanhado a loucura nacionalista e racista da Europa, o Brasil deveria ser o país mais dividido, menos pacífico e mais conturbado da face da terra. Logo, pela lógica europeia, seria de se esperar que cada um dos grupos étnicos fosse hostil com os outros – os que chegaram primeiro com os que vieram depois, brancos contra negros, americanos contra europeus, morenos contra amarelos; que as maiorias e as minorias se hostilizassem em uma disputa incessante pelos seus direitos e privilégios. Para surpresa, descobre-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, convivem em plena harmonia e, apesar das diferentes origens, apenas competem no intuito de acabar com suas diversidades a fim de se tornarem rapidamente brasileiros, de constituir uma nação nova e homogênea.[1]
Passados quase 80 anos da chegada do escritor nascido em Viena e que faleceu em Petrópolis-RJ de forma trágica, a nossa realidade mudou, pois parece que a população regrediu neste aspecto e os conceitos de tolerância racial e convivência harmoniosa ficaram em um passado distante. Nos dias de hoje, talvez a impressão do romancista não fosse tão otimista.
No último sábado (20/11), foi celebrado o Dia da Consciência Negra. A data tem como missão promover um resgate histórico e estabelecer um amplo debate em torno da igualdade racial e de combate ao racismo no Brasil. Nada obstante todos os esforços para viabilizar uma agenda positiva em torno do tema, atos de discriminação racial no futebol brasileiro têm apresentado um aumento significativo nos últimos anos.
Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), por maioria deu parcial provimento a recurso do time catarinense em caso que envolvia episódio de discriminação racial cometido por um dirigente do Brusque FC, contra um atleta do Londrina EC, que foi ofendido com uma expressão injuriosa durante partida do Campeonato Brasileiro.
Como autor da conduta foi identificado o Presidente do Conselho Deliberativo do Clube que proferiu palavras discriminatórias ao atleta afrodescendente do Londrina. A saber: “vai cortar esse cabelo seu cachopa de abelha”.
Com efeito, tais palavras ultrapassam os limites de uma eventual liberdade de expressão ou do direito de torcer, ainda mais, quando proferida por um alto representante de uma entidade de prática desportiva.
Em julgamento realizado pela 5ª Comissão Disciplinar o clube havia sido punido com a perda dos pontos da partida. Todavia, o Tribunal Pleno, por maioria, deu provimento ao recurso do clube para restabelecer os pontos que haviam sido retirados, nada obstante a manutenção da condenação na perda de um mando de campo e multa no valor de R$ 60.000,00.
Outros episódios recentes também merecem ser relatados para que não caiam no esquecimento. Após marcar um gol durante a partida entre Corinthians e Nacional do Uruguai, a atleta Adriana foi chamada de “macaca” pelas jogadoras do time adversário.
Poucos dias antes, ocorreu outro caso de discriminação racial no campo, quando Brasil de Pelotas e Brusque jogavam pela Série B. Na ocasião, o torcedor Douglas Menezes chamou o zagueiro do Brusque, Sandro, de “negro desgraçado”. A ofensa também foi ouvida pelo companheiro de equipe Edilson.
Em julgamento proferido pela Justiça Desportiva, o Brasil de Pelotas foi punido com multa de R$ 30 mil por injúria racial praticada pelo torcedor do clube, enquanto este foi proibido de frequentar os jogos do time como mandante por 900 dias.
Já tive a oportunidade de manifestar que é incompreensível que, em pleno século XXI, atitudes irracionais sejam manifestadas por torcedores de determinados clubes.
O futebol tem a graciosa virtude de unir culturas e povos, sem distinção de credo, raça ou origem. A linguagem da bola é universal. Contudo, os recentes episódios de discriminação racial ocorridos nas partidas de futebol em território brasileiro demonstram, de forma inconteste, que o preconceito é uma chaga que envergonha o nosso país e que tem que ser erradicada de uma vez por todas.
Para coibir estas práticas de discriminação racial os clubes têm um papel fundamental e devem estipular campanhas preventivas e educativas com a finalidade de conscientizar o torcedor e da gravidade da conduta criminosa, que atingirá não apenas quem a praticou, mas poderá ter reflexos negativos para o clube.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê penas duras para esta prática criminosa, inclusive com a exclusão do clube do torneio.
Com efeito, a exclusão do time envolvido, daquele campeonato, pode parecer uma pena injusta e desproporcional, pois, afinal, foi apenas um grupo de indivíduos (não evoluídos) que cometeu o ato. Nada obstante, a partir do momento em que você pune a agremiação em razão do ato criminoso praticado por determinado grupo, possivelmente não haverá reincidência, pois haverá cautela redobrada no tocante a fiscalização e consequência da conduta dos torcedores.
Em relação ao recente “Caso Brusque”, julgado recentemente pelo Pleno do STJD é indene de dúvidas que a discriminação atinge a integridade do Campeonato, que é transmitido em rede nacional.
A ofensa praticada no caso em tela é de elevada gravidade na medida em que transcende a pessoa do atleta e alcança toda uma comunidade afrodescendente, com reverberação em todo o território nacional em razão da difusão da transmissão. Por fim, a ofensa foi praticada por um membro do alto escalão do clube, o que é de se lamentar, a ensejar a aplicação da pena máxima.
A Justiça Desportiva tem um papel fundamental, conferido pela Constituição da República, e não pode ser complacente com injúrias discriminatórias, pois já se passou da hora de adotar medidas enérgicas na tentativa de cessar este tipo de comportamento.
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[1] ZWEIG, Stefan – Brasil, um país do futuro – L&PM editores – 2013 – P. 16/18